Impune

‘O crime tinha muitos interessados. O latifúndio comemorou a morte do meu irmão’

O fazendeiro acusado de ser o mandante do assassinato, irmão de um ex-governador, dá hoje nome a uma escola de educação infantil

Reprodução YouTube
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À Corte Interamericana de Direitos Humanos, Rafael lembrou que seu irmão recebeu várias ameaças e que não estaria vivo para uma audiência. Foi morto 18 dias antes

São Paulo – O advogado e professor universitário Rafael Pimenta afirmou nesta terça-feira (22) à Corte Interamericana de Direitos Humanos que o Brasil vive “em estado de impunidade” pelos crimes de violência, no campo e na cidade. O caso de seu irmão, o também advogado Gabriel Sales Pimenta, assassinado em Marabá (PA) em 1982, Rafael acredita ser uma espécie de espelho, ou fio condutor, de uma política de impunidade no país.

“Me parece que o crime tinha muitos interessados”, afirma Rafael. Ele destaca uma vitória judicial obtida na Justiça pouco tempo antes do crime, beneficiando um grupo de posseiros. “Antes que tivesse o julgamento do mérito, ele foi assassinado. Era um interesse geral do latifúndio que o Gabriel desaparecesse. O latifúndio comemorou a morte do meu irmão”, afirmou aos juízes da Corte Interamericana. Foram várias as ameaças, veladas ou explícitas, que motivaram pedido de proteção.

Fazendeiros contrariados

O conflito se origina ainda em 1980 em Pau Seco, Marabá, área da qual o fazendeiro Manoel Cardoso Neto, o Nelito, alegava ser o proprietário. O conflito chegou ao Grupo Executivo das Terras do Araguaia-Tocantins (Getat, órgão público), que manteve os trabalhadores na área, deixando insatisfeitos Nelito e o sócio José Pereira da Nóbrega, o Marinheiro, que foram à Justiça. Em outubro de 1981, a Vara Penal de Marabá concedeu liminar determinando a retirada dos trabalhadores rurais, sem ouvi-los. Foram todos despejados pela Polícia Militar.

Havia um jovem advogado, Gabriel Sales Pimenta, de 27 anos, que recorreu e conseguiu cassar a liminar. Ficou conhecido como o primeiro advogado da região, marcada pela violência, a conseguir esse feito na Justiça. O mandado de segurança permitiu que os posseiros (158 famílias) retornassem a Pau Seco. Mas as ameaças continuaram. Agora, com um nome a mais: Gabriel Pimenta.

Segundo relatos, os envolvidos no processo teriam afirmado, inclusive, que ele morreria antes de 4 de agosto de 1982, data prevista para audiência no Tribunal da Justiça. E assim foi. O assassinato ocorreu 18 dias antes, por volta das 22h30 de 18 de julho. Recebeu três tiros pelas costas, a uma distância de dois metros, quando saía de um bar, onde se comemorava a criação do PMDB local – à época, era um partido de oposição à ditadura ainda vigente. O terceiro tiro foi desferido quando Gabriel estava caído no chão, provavelmente já sem vida. Dois homens foram embora em um Fusca bege.

Enquanto isso, o fazendeiro apontado como mandante dá nome a uma escola municipal de educação infantil (Emef) em Teixeira de Freitas, na Bahia. “Acho um acinte ao Direito, à Justiça, à democracia”, reagiu Rafael. A família pede a troca do nome, para homenagear Gabriel.

Pedido de vista de dois anos

O advogado citou na Corte Interamericana outras peculiaridades do caso. Quando esteve em Marabá para tomar conhecimento do processo, por exemplo, descobriu no fórum que até a véspera os autos estavam com a defesa dos réus. Estavam nos últimos dois anos, embora fosse um pedido de vista de apenas cinco dias.

Nelito também é irmão de Newton Cardoso, ex-governador de Minas Gerais. Em abril de 2006, ele chegou a ser preso em uma fazenda em Pitangui (MG), a 120 quilômetros de Belo Horizonte. Não foi a julgamento. Marinheiro, por sua vez, foi apontado como intermediário. E Crescêncio Oliveira de Souza teria sido o executor do crime. Ambos foram mortos. Suspeita de “queima de arquivo”.

Juiz de Fora, Brasília, Pará

Nascido em Juiz de Fora (MG) em 1954, Gabriel era um dos sete filhos, todos homens, do casal Geraldo e Maria da Glória. Além dele, Sérgio, Marcos, José, Rafael, André e Daniel. “Nossa relação familiar era muito boa, íntima, solidária”, lembrou Rafael na audiência. “Ele era um exemplo para mim e creio também que para a maioria dos meus irmãos.” O advogado se emocionou ao responder algumas perguntas. “Afetaram (o crime e suas consequências) profundamente. A todos nós. De uma maneira profunda. Ainda hoje. Meu pai e minha mãe passaram a ter um outro modo de enxergar a vida.”

Após se formar em Direito, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Gabriel foi trabalhar em Brasília, no Banco do Brasil. Foi aprovado em concurso. Permaneceu lá durante um ano, até ser convidado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) para defender trabalhadores rurais. Assim, foi primeiro para Conceição do Araguaia e depois a Marabá. “Os quase quatro anos que ele advogou o tempo todo foi atraído pela ideia de defender os trabalhadores sem-terra, os moradores mais simples. (Era uma) advocacia popular, contra o latifúndio”, lembra o irmão Rafael. “Ele queria participar de toda as atividades. Não só advogava as questões fundiárias, mas também criou associações de mulheres, de bairro, entidades sindicais.”

Ainda durante a audiência pública, que prosseguirá amanhã (23), o advogado citou mais dois exemplos do que chamou de “estado de impunidade” no Brasil. Uma situação que parece aproximar 1982 e 2022: a morte de Marielle Franco, há quatro anos, e as recentes queimadas na Amazônia.