Educação

Quebra de estrutura racista exige revisão cultural e educacional

Professor e biógrafo de Luiz Gama defende a memória do abolicionista ante a uma trajetória do preconceito histórico no Brasil e cobra ensino da história e da cultura indigena e da África nas escolas

domínio público

A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1895): O ‘embranquecimento libertador’

São Paulo – “Todo escravo que mata o seu senhor está agindo em legítima defesa.” A frase de Luiz Gama é classificada como emblemática pelo professor e um dos fundadores do Museu Afro BrasilLuiz Carlos Santos, em entrevista para a RBA. Jornalista e mestre em sociologia pela USP, Santos é autor da biografia intitulada Luiz Gama (Summus – Selo Negro Edições), sobre a história do abolicionista autodidata que conquistou a liberdade para 500 escravos e foi reconhecido ontem (3) pela OAB como advogado, 133 anos após sua morte.

Para o professor, o momento atual possui importância singular para o resgate da memória. “Em uma sociedade baseada na intolerância, a história do abolicionista é essencial. Estamos vendo práticas racistas se proliferando e não conheço quem não tenha experiências temerosas com relação às perspectivas”, diz.

Santos relaciona a ascensão aparente do preconceito a diferentes fontes do ódio em que parte da sociedade encontra-se imersa. “Considero que ódios acumulados desde um pouco antes do PT estão eclodindo. Uma dessas fontes visíveis foi a chegada de um operário ao poder. Um operário mestiço no poder! Em um país racista, com uma elite que se pensa branca, europeia, mesmo não sendo, ela não aceita isso.”

“Tem muita gente racista se sentindo muito à vontade para falar o que quer. Por trás das redes sociais, aonde se manifestam, existe um elo institucional. Você tem deputados e senadores se portando desta forma”, explica sobre a conexão existente entre a ascensão do ódio e o conservadorismo político. “O racismo está na estrutura, e estruturas são feitas de pessoas. As instituições se mantêm, por muitas vezes, de forma retrógrada e conservadora”, observa.

O modificação dessas estruturas exige intervenções nas relações culturais e na formação dos cidadãos. Daí a defesa, por Santos, da lei que determina a aplicação das disciplinas História da África e Cultura Afro-Brasileira e Indígena no currículo do ensino fundamental. “É muito importantes, pois existe uma grande dificuldade na formação social de negros. Se um negro se torna médico, o filho dele, se fizer medicina, terá toda a batalha novamente, em razão do racismo perverso no Brasil. Na visão do preconceito, se o negro tem qualidades é por alguma exceção.”

A lei sancionada em 2003 (10.639) foi modificada em 2008 (11.645) para acrescentar questões indígenas no conteúdo, ponto também defendido por Souza. “Incorporar o movimento negro à luta dos primeiros americanos, chamados índios, faz parte do nosso processo. Sempre fizemos isso”, disse. A ideia defendida gira em torno da inclusão social. “Negros e índios devem ter respaldo social para dar a capacidade de todos olharem e reconhecer a importância de seus papéis”, defende.

Apesar de vigente, a aplicação da lei não corresponde à totalidade dos municípios brasileiros. Cerca de 52% das cidades ainda não implementaram as disciplinas previstas. “Todos os lugares que observaram a possibilidade da não implementação, não o fizeram. E com argumentos sofistas, falsos, de que não tinham material para tal. Mentira, hoje temos uma das maiores bibliotecas do mundo falando sobre os temas relacionados”, diz.

“Escrevi com mais dois autores, em 2005, uma antologia de poesias negras, pela editora Moderna. O governo federal comprou cerca de 36 mil exemplares e colocou em todas as bibliotecas públicas do pais”, exemplificou, a respeito da presença de material adequado para a implementação do ensino de história e cultura negra e indígena nos currículos escolares. “Mesmo assim, grandes cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, entre outros já se adequaram”, ponderou.

A redenção de Cam

Para compreender melhor a natureza do preconceito enraizado na sociedade brasileira, Santos recorda do argumento, utilizado no século 16 pela Igreja Católica, para justificar a escravidão disseminada nas colônias. “Existe uma especificidade na bíblia chamada A maldição de Cam que condena, na visão europeia da época, o negro a ser escravo”.

A história, centrada no filho de Noé, Cam, é importante para entender o desenvolvimento do racismo. “Após o dilúvio, Noé, descansando, se embebeda e fica nu em sua tenda. Um dos filhos dele, Cam, entra e vê a situação. Ele conta para os outros irmãos que cobrem o pai. No dia seguinte, Noé, ao perceber o que acontecera, amaldiçoa Cam a ser escravo dos irmãos dali por diante, todas as próximas gerações.”

Essa passagem bíblica, com tal interpretação das instituições da época, foi base para as teorias da superioridade e do “embranquecimento”. “

Em 1882, um pintor, Modesto Brocus, cria um quadro, que está no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, chamado A redenção de Cam. Lá é possível ver três mulheres. Uma negra, mais velha, com as mãos levantadas, uma jovem mulata e seu bebê, uma criança branca. Ao lado delas, um homem branco”.

A figura representa que a “redenção” de Cam está baseada na superação dessa “maldição” a partir da miscigenação que deixa mais branco. “A redenção é essa, uma mulher negra agradecendo a Deus porque a próxima geração está livre de ser escrava.”

Em países como Estados Unidos, Austrália e África do Sul, o racismo foi institucionalizado, como o regime do Apartheid no último. No Brasil não houve essa conformação legal. “Aqui, quanto mais claro, menos discriminado. Isso coloca, para os negros, uma política de embranquecimento. A mestiçagem boa, que deixa mais branco.”

O professor destaca a importância desses elementos na história de Luiz Gama. “Ele chama à responsabilidade todos os senhores que se achavam brancos no Brasil, mas eram mestiços. É vanguardista, pioneiro nesta questão. Uma grande figura do movimento negro no Brasil. Ele teve uma ação política concreta de libertar escravos”, disse.