Tragédia anunciada

Chuvas em São Paulo: governo Doria usou menos da metade das verbas de combate a enchentes previstas para 2021

Para urbanista, poder público tem responsabilidade pela tragédia das fortes chuvas que já provocaram a morte de pelo menos 24 pessoas no estado. “Há aqui duas coisas que se misturam: a falta de planejamento e a falta de política fundiária”, aponta Nabil Bonduki

TWITTER/PREFEITURA DE FRANCO DA ROCHA
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Dos quase R$ 996,9 milhões liberados pela Assembleia Legislativa (Alesp), foram investidos apenas R$ 453,4 milhões, 45% do total pelo governo Doria

São Paulo – Para o arquiteto, urbanista e professor titular de Planejamento da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Nabil Bonduki, não é possível falar em “desastre natural” por conta das fortes chuvas que atingem o estado de São Paulo quando há mortes que poderiam ter sido evitadas. Em entrevista a Glauco Faria, do Jornal Brasil Atual, o urbanista pontua que o poder público tem responsabilidade pela tragédia que já matou ao menos 24 pessoas e deixou 1.546 famílias desabrigadas ou desalojadas em diversas regiões, segundo balanço da Defesa Civil divulgado na tarde de ontem (31).

Entre as vítimas, oito eram crianças. E há ainda sete feridos e oito desaparecidos. Os óbitos foram registrados nas cidades de Franco da Rocha, Francisco Morato, Embu das Artes, Várzea Paulista, Arujá, Ribeirão Preto, Jaú e Itapevi. O estado ainda computa ocorrências de alagamentos, queda de árvores, quedas de muros e deslizamentos de terra por conta dos temporais. Apesar do volume de chuva estar bastante elevado e do problema ser antigo, Nabil ressalta “que o governo do estado poderia ter feito mais e, ao não ter utilizado as verbas, ele mostra claramente isso”, critica.

Investiram menos

O urbanista faz referência ao fato da gestão Doria ter executado menos da metade do orçamento previsto para obras de infraestrutura antienchente em todo o estado de São Paulo em 2021. De acordo com levantamento do jornal Folha de S. Paulo, dos quase R$ 996,9 milhões previstos, foram investidos apenas R$ 453,4 milhões, 45% do total. Em 2020, o percentual gasto foi ainda menor, de 18% dos R$ 718,1 milhões destinados ao combate às enchentes. 

De acordo com Nabil, o governo estadual precisa ter uma visão de execução desse tipo de orçamento para prevenção dessas tragédias. Doria anunciou ontem um repasse de R$ 15 milhões para as prefeituras dos 10 municípios mais afetados pelas enchentes e deslizamentos. Mas o urbanista pondera que a liberação veio tarde e que vidas já foram perdidas. “Há aqui duas coisas que se misturam: a falta de planejamento e a falta de política fundiária”, aponta.

Chuvas não são desastres ‘naturais’

“Nós temos que garantir o acesso à terra para quem precisa, principalmente para produção habitacional. E depois nós precisamos ter programas habitacionais voltados à população de baixa renda que hoje é obrigada a viver em áreas de risco geológico, ou áreas de inundação, íngremes, sujeitas a deslizamentos como estes que vimos nos últimos dias em São Paulo, mas que vimos também em Minas Gerais e na Bahia”, explica. “Não dá para a gente dizer que isso não era previsível. Eu mesmo escrevi, 15 dias atrás, um artigo em que dizia que São Paulo até agora havia sido poupado, mas não dava para confiar na sorte porque era uma questão de tempo. Há quase uma semana já havia a previsão de que haveria uma faixa no estado que sofreria fortemente as chuvas.”

Nabil pontua ainda que a área de planejamento acabou sendo colocada de lado pela atual gestão estadual. “E o governo Doria não só não está investindo como praticamente eliminou a estrutura governamental que deveria cuidar do problema, que era a CDHU. Uma companhia histórica que existia há mais de 50 anos no estado e foi extinta por um projeto do governador”, observa. “Ele também não investiu na produção habitacional feita pelo estado e extinguiu a Emplasa, a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano. Ela estava atuando junto a esses municípios para fazer o planejamento da região e os apoiando para receber a população que acabou indo morar lá.”

A falta de políticas de moradia

Há mais de duas décadas sob comando do PSDB, governo de São Paulo vem investindo há 11 anos valores abaixo dos aprovados pela Assembleia Legislativa para prevenir as enchentes. O dado da Globonews leva em conta a execução orçamentária disponibilizada pela Secretaria Estadual da Fazenda e Planejamento. Em paralelo, a região metropolitana de São Paulo, em especial as três cidades mais afetadas pelas chuvas recentes, registraram um boom populacional nas últimos 30 anos. 

Reportagem da BBC News Brasil mostra que Francisco Morato, Embu das Artes e Franco da Rocha, onde 16 das vítimas viviam, tiveram um crescimento da população muito superior ao computado na capital paulista e demais cidades das região metropolitana, que compreende 39 municípios. O que, de acordo com Nabil, vem ao encontro da falta de políticas fundiárias e de habitação que expulsam cada vez mais os pobres de regiões centrais, com maior estrutura, para as periferias e áreas de risco. Apenas as cidades com mortos pela chuva acumulam, juntas, mais de 900 áreas de risco mapeadas, segundo a Defesa Civil estadual.

Pobres, as principais vítimas

“São municípios periféricos e pobres da região metropolitana que recebem a população mais vulnerável. E eu diria que não houve um boom habitacional, mas um boom de crescimento populacional e de habitação precária. Porque a falta de planejamento nesses municípios, de políticas habitacionais e de áreas que não deveriam ser ocupadas, acabam gerando geralmente assentados precários. Os problemas são interligados”, justifica.

Nabil lembra que, por conta das mudanças climáticas, eventos extremos, como fortes chuvas, serão cada vez mais frequentes. Mas o país ainda está mal preparado e faltam investimentos em políticas habitacionais que deveriam ser uma prioridade.

“Até porque temos um governo federal negacionista em relação a isso (mudanças climáticas). E estamos mal preparados para o planejamento e produção habitacional e para a resiliência urbana em enfrentar as emergências. A falta de investimentos dos governos neoliberais é porque eles acham que o mercado vai resolver tudo. Mas vemos o desastre que está acontecendo”, finaliza o urbanista.