Legalidade e ética

Caso Blaze: influenciadores digitais não podem fugir da responsabilidade por propaganda

Escândalo dos jogos de azar chama a atenção para a atuação dos influenciadores que divulgam a empresa. Mas até onde vai a responsabilidade deles?

dole777/Unsplash license
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A partir do momento que você tem muitos seguidores, o que você faz com esses números? Não são números, são pessoas", critica o influenciador digital Vitor diCastro

São Paulo – O escândalo da empresa Blaze chamou a atenção da população sobre a responsabilidade dos influenciadores digitais. Esta empresa, com sede em Curaçau, uma ilha no Caribe, opera ilegalmente, no Brasil, jogos de azar on-line. Esses jogos estão dispostos no site, inclusive, em uma sessão de “cassino”, algo fora da legalidade. Além disso, explodem casos em que os apostadores sequer recebem os valores combinados. Em meio a tudo isso, uma série de influenciadores ganham milhares, às vezes milhões, para promoverem a empresa em suas redes sociais.

Entre os nomes ligados a esta plataforma, celebridades como Neymar, Felipe Neto, Viih Tube, Mel Maia, John Vlogs, Rico Melquiades e Bárbara Evans. Esta última, aliás, chegou a dizer que não vai parar de produzir conteúdos publicitários para a Blaze. Pelo menos enquanto o dinheiro estiver entrando. “Eu apenas divulgo os jogos da Blaze. Você tem que ter responsabilidade para jogar, tem que saber a hora de parar”, disse Bárbara.

Não se trata de pouco dinheiro. A Justiça já bloqueou mais de R$ 100 milhões da Blaze. Contudo, suas práticas são escusas, envolvem sedes internacionais e pessoas incertas que trabalham com os valores em território brasileiro.

A fala da influenciadora, além de ignorar o poder de destrutivo dos jogos de azar, é contrária à legislação brasileira. Isso porque estes jogos que dependem exclusivamente da sorte são proibidos pela Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/41). Então, esse posicionamento pode ser ainda mais problemático. Isso porque o Código Penal, em seu artigo 286, descreve o delito de incitação ao crime como: “incentivar, estimular, publicamente, que alguém cometa um crime”.

Apelo à responsabilidade

Contudo, a voz da influenciadora não é única. “A gente que é influenciador sabe muito bem o quanto de dinheiro que essas plataformas nos oferecem para fazermos essa propaganda. Essa parte do dinheiro, todo mundo quer. E sua responsabilidade? A partir do momento que você tem muitos seguidores, o que você faz com esses números? Não são números, são pessoas”, critica o influenciador digital Vitor diCastro, que conta com mais de 1,7 milhão de seguidores no Instagram. Ele é uma das vozes do meio que busca racionalidade em meio a tantas propostas indecorosas.

DiCastro lembra que “a partir do momento em que você é uma pessoa pública, todas suas escolhas vão impactar no público. O público é quem te dá o aplauso, é quem garante suas publicidades. Então, como você não vai pensar no público? Se você mandar as pessoas pularem da ponte, você será preso por isso. Influenciadores não estão acima do bem e do mal. Você tem responsabilidade.”

Então, o influenciador, ou influencer, como é de costume chamar essa nova atividade do século 21, faz um apelo. “A maioria do Brasil é pobre. Não tem acesso, dinheiro, carro. Os milhares ou milhões que vão para sua conta valem a saúde financeira e mental do seu público? Fica a dica para esses 700 mil brasileiros influenciadores, para quem tem milhões mas não tem muita cognição. É importante sabermos que o trabalho é legal, mas também tem um preço. E esse preço vai ser pago”, disse.

Imoralidade x ilegalidade

DiCastro faz um apelo à responsabilidade ética e moral dos influenciadores. Sua visão, inclusive, encontra respaldo na legislação brasileira. “A atividade de influenciador digital ainda não tem regulamentação ou legislação própria, mas nem por isso deve ser encarada como uma espécie de ‘escudo’ que blinda aquele influencer da responsabilidade perante seus usuários, pelos produtos e serviços que divulga em suas mídias sociais”, explica, em entrevista à RBA, a advogada sócia da área Cível e Resolução de Conflitos de Innocenti Advogados Janaína De Castro Galvão.

Ela destaca que é possível buscar uma responsabilidade civil em caso de dano, de acordo com o direito do consumidor. “A publicidade feita peço influenciador está submetida às regras do Código de Defesa do Consumidor, seja ela uma propaganda remunerada ou não. Os influenciadores digitais podem responder (em tese) de forma objetiva (isso é, independente de comprovação culpa) e solidária junto com o fornecedor.”

Em regra, o dano civil é derivado de uma ilicitude. Então, a depender do processo, é possível cobrar responsabilidade e reparação. “A lógica por trás desse entendimento de responsabilização dos influencers é que eles também se vinculam à cadeia produtiva e de consumo dos produtos e serviços que divulgaram, pois aparecem em posição semelhante à de fornecedores, diante de seus seguidores ou consumidores. É por isso que o influenciador também deve ser cauteloso ao vincular sua imagem”, defende.

Legislação não regulamenta

Como explicou a advogada, não existe uma legislação que regulamenta especificamente a atividade dos influenciadores. Este ponto pode abrir caminho para uma defesa estruturada na legislação que versa sobre responsabilidade. O advogado mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo Ali Smaili lembra que, primeiramente, a empresa é a maior responsável por danos civis e que a responsabilização dos influenciadores deve ser analisada em detalhes.

“De acordo com a legislação, a responsabilidade por ato de terceiro existe em algumas hipóteses do Código Civil e na legislação esparsa. Contudo, não é possível extensão para todos os casos. Isso, a depender do nível de participação dos influenciadores no negócio em si. Não sabemos o teor dos contratos. Mas pode haver participação maior na empresa. Isso se ficar comprovado, fica demonstrado que, além de negociar a imagem, por ato doloso ou culposo, eles tenham participado de algo que não a publicidade. Assim poderia ser possível a responsabilização”, afirma.

Ele explica que “a pessoa (que sofreu dano) terá de demonstrar que o famoso participou de modo decisivo para que ela tenha tomado a decisão dela de entrar no jogo e perder o dinheiro”.

Outra hipótese tem relação com ações por danos coletivos, explica o advogado. “Em demandas coletivas, de institutos de defesa do consumidor, essas demandas podem tentar com maior margem de sucesso responsabilizar esses influenciadores. Mas a empresa deve suportar os danos causados”, afirma.

Blaze e danos coletivos

Como explicou o advogado, órgãos de defesa do consumidor, como o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) ou mesmo a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) podem ingressar no polo ativo de um processo, particularmente contra a empresa. Também há de se avaliar acompanhamento do Ministério Público. Vale lembrar que a empresa em questão também pode responder por estelionato, tipificado no Código Penal como ação que leva a “falsa concepção de algo com o intuito de obter vantagem ilícita”. Claro, esses fatos dependem de uma análise detalhada de cada caso.

“A divulgação de jogos de azar online pode representar, em hipótese, dano coletivo, que pode dar ensejo ao ajuizamento de ação civil pública pelo Ministério Público contra essas empresas”, comenta Janaína. Ainda sobre ações coletivas de reparação, ela argumenta que “se o consumidor em si se sentir lesado, deve buscar seus direitos, com a apresentação de reclamação administrativa junto ao Procon, ou ajuizamento de ação judicial, buscando a reparação pelo dano material ou moral experimentado”.