Audiência de custódia por videoconferência na pandemia abre porta para retrocesso
Projeto de Lei aprovado no Senado autoriza a realização de audiência de custódia virtual durante a pandemia, o que pode “invisibilizar” tortura de presos
Publicado 23/05/2021 - 14h50
São Paulo – O Senado aprovou na última terça-feira (18) o Projeto de Lei (PL) 1.473/2021 que autoriza a realização de audiências de custódia por videoconferência durante a pandemia. De autoria do senador Flávio Arns (Podemos-PR) e relatoria da senadora Simone Tebet (MDB-MS), o projeto segue para votação na Câmara dos Deputados. A proposta é vista com preocupação por organizações de direitos humanos, já que a prática poderia “invisibilizar” ainda mais o cenário de tortura aos presos.
Especialistas afirmam que é possível manter as audiências presenciais durante a pandemia, desde que sejam obedecidos os devidos cuidados sanitários, como o uso de máscaras e distanciamento. Por outro lado, destacam que, na medida em que os tribunais investirem recursos em ferramentas eletrônicas para a realização das videoconferências, haverá pressão para a manutenção desse mecanismo mesmo após o fim da emergência em saúde.
A audiência de custódia foi instituída no ano de 2015, por meio de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O instrumento determina que a pessoa presa em flagrante, ou por mandado, seja levada em até 24 horas à presença do juiz. O magistrado deve avaliar a legalidade da prisão e se há indícios de maus-tratos por agentes de segurança.
Contudo, o relatório Investigação em Labirinto, produzido pela ONG Conectas Direitos Humanos em parceria com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), aponta que o mecanismo ainda não funciona adequadamente. De 53 denúncias de violência cometidas por policiais militares relatadas entre 2015 e 2018, nenhuma resultou na abertura de processo criminal contra o agente.
Riscos da audiência de custódia remota
O PL determina que, para a realização da audiência virtual, a permanência do preso sozinho em uma sala, que deverá contar com câmeras internas e externas. Ainda assim, o advogado criminalista José Carlos Portella Júnior, membro do Coletivo Advogadas e Advogados pela Democracia (Caad), observa que elas podem ser insuficientes. O detido pode, por exemplo, não contar com a presença do seu advogado na unidade, o que tornaria o ambiente “hostil” para relatar eventuais abusos sofridos.
“Vai desestimular a pessoa fazer esse relato porque estará isolada numa sala, dentro da unidade prisional, com pessoas que fazem parte do estafe da unidade”, disse Portella, em entrevista à repórter Júlia Pereira, para o Jornal Brasil Atual da sexta-feira (21). Para ele, a presença do juiz no local confere mais segurança ao detento, quando este tiver que relatar abusos cometidos por policiais.
Pelo texto aprovado no Senado, a realização da audiência de custódia remota deverá ocorrer apenas quando não for possível a sua realização de forma presencial. Porém, para assessora de advocacy (prática do Direito definida pela atuação em prol de causas e direitos) do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD, Clarissa Borges, o risco é que a exceção se torne regra.
“Vamos assistir ao investimento dos tribunais na aquisição de equipamentos, na contratação de técnicos. Temos, então, um risco de uma pressão muito grande sobre o Poder Legislativo feita pelos tribunais” , declarou. Como a finalidade das audiências é permitir o controle da atividade policial, o tema mexe com “interesses muito profundos na sociedade brasileira”, segundo ela.
Advogada do programa de enfrentamento à violência institucional da Conectas, Carolina Diniz aponta que as audiências por videoconferência devem piorar o cenário de abusos cometidos. “Temos que lutar pela melhoria da audiência de custódia, com a melhor produção de laudos de corpo de delito etc. Mas o que estamos vendo agora é um retrocesso absurdo. Ela vai perder a razão de ser”.