Tragédia brasileira

Presidente fez ‘ataque deliberado contra a sua própria população’, acusa advogada

Na primeira parte do julgamento do Tribunal Permanente dos Povos, acusação procurou mostrar que negros, indígenas e trabalhadores na saúde foram ainda mais atingidos

Reprodução/YouTube
Reprodução/YouTube
Sessão ocupou o Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP: julgamento, acompanhado de Roma, continuará até amanhã

São Paulo – A primeira parte do julgamento simbólico do governo Bolsonaro, aberto às 9h03 desta terça-feira (24), foi dedicada à acusação. A advogada Eloísa Machado, pela Comissão Arns de Direitos Humanos, afirmou que o presidente da República fez “ataque deliberado e sistemático contra a sua própria população”. E cometeu, assim, crime contra a humanidade. “Centenas de milhares de mortos são a prova disso”, disse Eloísa, na abertura da sessão do Tribunal Permanente dos Povos, que vai até amanhã, em São Paulo e Roma.

“A pandemia foi de fato, no seu surgimento, algo imprevisível, e impôs desafios a todos os países”, disse Eloísa. “Aqui (no Brasil), falamos de uma política deliberada. O presidente seguiu a estratégia de continuar contaminando todos nós”, acrescentou a advogada, que fez sua intervenção logo após a exibição de um vídeo com Jair Bolsonaro em vários momentos da pandemia, com frases e expressões que ficaram marcadas nos dois últimos anos, como “gripezinha ou resfriadinho”, “não sou coveiro”, “país de maricas”, entre outras. E relatos dramáticos, de pessoas sufocadas, sem oxigênio, e intubadas sem sedação. Ou de suicídios de profissionais da área de saúde.

Homenagem às vítimas

A sessão também teve homenagens às vítimas da covid-19. Como a trabalhadora doméstica Cleonice Gonçalves, primeira pessoa a morrer no país, contaminada pela patroa, que retornara de viagem ao exterior. E o militante Thiago Marcelino, do movimento negro, que se dedicava a distribuir alimentos na periferia de São Paulo.

O ambiente político brasileiro também foi tema de comentários na sessão, realizada presencialmente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), com acompanhamento virtual de Roma. Alguns dos jurados fizeram perguntas depois de ouvir os advogados de acusação, sobre a política do governo, o sistema de saúde brasileiro e a perda de dados sobre a pandemia no país.

Conjuntura ameaçadora

O julgamento ocorre “em uma conjuntura ameaçadora”, afirmou o ex-ministro Paulo Sérgio Pinheiro, apontando risco permanente de retrocesso político e a intenção do atual presidente de se tornar um autocrata. Já o também ex-ministro José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns, falou em “necropolítica” do governo, cujos ataques ao Supremo Tribunal Federal e à Justiça Eleitoral “fazem crerem um golpe em marcha”.

A acusação procurou mostrar que negros, indígenas e trabalhadores na saúde foram ainda mais atingidos pelas políticas (ou sua ausência) do governo. “O presidente da República abandonou o povo à própria sorte, zombou da dor das famílias, desrespeitou as medidas sanitárias”, afirmou a secretária sub-regional da Internacional de Serviços Públicos (ISP) no Brasil, Denise Motta Dau “O ministro da Saúde, em vez de promover políticas de proteção e restabelecer o diálogo social, se omite e sai pelo país afora propagandeando o uso de cloroquina.”

Terena, advogado da Apib: presidente odeia os povos indígenas (Reprodução/YouTube)

Da senzala à favela

Para Wania Sant´Anna, da Coalizão Negra por Direitos, “sobram elementos” para a condenação do presidente. Há indícios, lembrou, de que a morte de negros tenha sido proporcionalmente bem maior. “Enquanto houver racismo não haverá democracia”, afirmou, citando trecho do samba-enredo da Mangueira em 1988, ano de centenário da abolição oficial da escravatura: “Livre do açoite da senzala/ Preso na miséria da favela”. A advogada Sheila de Carvalho, também da Coalizão, lembrou de declarações do presidente sobre a pesagem de negros em arrobas. Ela apontou “negligência criminosa” do governo, apontando falta de investimento na saúde pública, políticas econômicas de austeridade e perda de dados sobre a covid.

O coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Dinamam Tuxá, afirmou que não se via um “cenário tão gravoso, com tantas violações, tantos retrocessos”, desde a ditadura. Segundo ele, 160 povos indígenas – mais da metade dos existentes no país – foram atingidos diretamente pela pandemia.

Violência histórica

Advogado de acusação pela Apib, Maurício Terena afirmou que, historicamente, o indígenas sofrem ataques. “Nossas mulheres estupradas, nossas crianças sugadas por dragas de garimpo ilegal, mercúrio contaminando nossos corpos, invasão de terras, criminalização de lideranças, ataques de pistoleiros”, relacionou. Assim, ele lembrou que no próprio fim de semana, quando ele preparava sua intervenção no julgamento, um jovem Guarani-Kaiowá (Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos) foi morto em uma fazenda em Mato Grosso do Sul. .

“Estamos sendo mortos no campo desde que esse país de Pindorama passou a se chamar Brasil”, disse Terena, para se direcionar as ações do atual governo. Ações como a retirada da Fundação Nacional do Índio (Funai) da atribuiçao de remarcar território, transferida ao Ministério da Agricultura, comandada por Tereza Cristina, “personificação do agronegócio”, como ele definiu. Segundo o advogado, o presidente da República mostra “ódio” aos povos indígenas. E tem sido coerente com suas declarações, desde o tempo em que era deputado. Como o de 1998, quando Bolsonaro disse que a cavalaria brasileira foi “incompetente”, ao contrário da norte-americana, que dizimou os indígenas daquele país. “Para nós que sobrevivemos, é dever continuar a contar ao mundo o que se passa no Brasil.”

No final da manhã, foram ouvidas duas testemunhas da acusação, que também responderam perguntas dos jurados. O senador Humberto Costa (PT-PE) falou sobre as conclusões da CPI da Covid. E a pesquisadora Deisy Ventura, professora titular de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP, detalhou ações do governo em prejuízo da população. Também deram testemunhos Benedito Augusto, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS-CUT), Valdirlei Castagna, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), e Shirley Marshal, da Federação Nacional dos Enfermeiros.