Desafio brasileiro

Entre o Estado que se omite e o que combate a escravidão contemporânea

Pobreza está na raiz do problema, o que exige mais políticas públicas. Em 2021, foram resgatados quase 2 mil trabalhadores

Marcello Casal Jr./Agência Brasil - Arquivo MPT
Marcello Casal Jr./Agência Brasil - Arquivo MPT
Trabalho análogo à escravidão se mostra em várias faces, mas com origem na vulnerabilidade social e econômica

São Paulo – Na data em que se celebra o combate à condição classificada como escravidão contemporânea, ontem (28), juristas e pesquisadores se reuniram para avaliar avanços e deficiências da ação do Estado. “A fiscalização vem sendo enfraquecida, pois a falta de recursos para a fiscalização é gritante”, afirmou o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra, promotora do evento), Luiz Colussi. Segundo a vice-presidenta da entidade, Luciana Conforti, de aproximadamente 3.600 cargos de auditores-fiscais, apenas 2.050 estão efetivamente ocupados.

O 28 de janeiro também tornou-se o Dia Nacional do Auditor-Fiscal do Trabalho, conforme estabelece a Lei 11.905, de 2009. Nesse dia, em 2004, pistoleiros mataram três fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho, naquela que ficou conhecida como chacina de Unaí (MG). Os mandantes do crime, mesmo condenados, continuam soltos.

Além da ação dos grupos móveis de fiscalização e dos cortes orçamentárias, a Anamatra discutiu o conceito de trabalho análogo à escravidão. E também as raízes históricas do problema. E como essas violações de direitos também são descritas no artigo 149 do Código Penal, o debate chegou também ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Vulneráveis

“A maior razão de as pessoas passarem por essa situação de exploração é a vulnerabilidade socioeconômica”, afirma a procuradora Lys Sobral Cardoso, titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete), do Ministério Público do Trabalho. “A fome também prende as pessoas”, acrescenta. O artigo 149 fala em jornada exaustiva, condições degradantes e restrições à locomoção do trabalhador em razão de dívida como situações que caracterizam o trabalho escravo. Lys e outros participantes apontam a pobreza como origem da exploração. O país teria passado de um regime escravista ara um sistema de servidão.

Para a auditora-fiscal do Trabalho Jamile Virgilio, assessora jurídica da Divisão para Erradicação do Trabalho em Condições Análogas a Escravo (Detrae), o fato de o STF discutir se uma pessoa “tem a dignidade aviltada” por dividir espaço com animais em um curral ou por coar água com a própria camisa “diz muito sobre a nossa sociedade”. Coordenadora do Programa de Princípios e Direitos Fundamentais do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Maria Claudia Falcão diz que o problema – que atinge mais de 25 milhões no mundo – pode se agravar.

Trabalho decente

A pandemia de covid-19 causou “colapso” na renda e “escancarou problemas e desigualdades”, observa a representante da OIT. Recentemente, a organização divulgou relatório apontando incertezas na recuperação da economia. “Não há trabalho decente com a persistência do trabalho escravo e infantil. Os países precisam agir, colocar o tema do trabalho na pauta.”

O historiador Antônio Alves de Almeida tratou da “transição” do trabalho escravo para o supostamente livre. “A escravidão no Brasil tem mudanças, mas também tem permanências”, disse o autor do livro Trabalho escravo contemporâneo: A Modernização da Casa-Grande e da Senzala no Brasil (editora Cousa), lançado em 2020. E o jornalista e professora Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil, abordou a resistência dos grupos econômicos de adotar medidas de responsabilidade social. Para ele, é preciso “avançar em novas formas de regulação de cadeias globais”, responsabilizando as empresas.

Ele citou a criação da chamada “lista suja”, cadastro de empregadores que usam ou usaram mão de obra análoga à escravidão. E recorda que durante evento na Câmara, há aproximadamente 15 anos, um deputado chamou a lista de “instrumento comunista”. Ao que Sakamoto rebateu dizendo que se tratava, na verdade, de uma medida essencialmente capitalista, ao garantir transparência de informação para o próprio setor empresarial tomar decisões e fazer seu gerenciamento de risco.

escravidão contemporânea
Os professores Almeida e Sakamoto e as representantes quilombolas Sandra Andrade e Sandra Braga, em debate da Anamatra sobfe escravidão contemporânea (Reprodução YouTube)

A cor da escravidão contemporânea

O jornalista e professor lembrou que, no Brasil, a escravidão tem cor, “e é negra”. O perfil do trabalho escravo mostra predominância de jovens negros. Para Sandra Braga e Sandra Andrade, da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), o fenômeno remete à escravidão do passado. “Essa realidade é invisível para a sociedade brasileira. (O trabalhador) não tem documento, não assina… Fazem como antigamente: põem na traseira do caminhão, como animal. Para muita gente, o negro ainda não é gente.”

Os debates tiveram ainda a presença do juiz federal e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Carlos Henrique Haddad), da diretora do Instituto de Ciências Jurídicas da Federal do Pará (UFPA), Valena Mesquita, e da professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcela Soares. Para ela, “novas e velhas formas de trabalho” se traduzem em precarização. Assista aqui na íntegra.  

Dados divulgados na quinta-feira (27) pelo Ministério do Trabalho e Previdência mostra que em 2021 o Brasil resgatou 1.937 pessoas em situação de escravidão contemporânea. É o maior número desde 2013 (2.808). Os grupos móveis de fiscalização realizaram 443 operações pelo país, número recorde.