Escalada da violência

Todo ano, 7 mil crianças e adolescentes morrem de forma violenta no país

Os adolescentes são as principais vítimas. Das 35 mil mortes violentas, mais de 31 mil tinham entre 15 e 19 anos. Porém, aumentou o número de crianças de até 4 anos vítimas de violência letal

Tânia Rego/EBC
Tânia Rego/EBC
Maiores vítimas, os adolescentes morrem, majoritariamente, fora de casa, vítimas da violência armada urbana e do racismo

São Paulo – No período de 2016 a 2020, pelo menos 35 mil crianças e adolescentes de até 19 anos foram mortos de forma violenta no Brasil. Média de 7 mil por ano – ou quase 20 por dia –, segundo o Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil, lançado nesta sexta-feira (22) pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância e Juventude (Unicef) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a partir da análise inédita dos boletins de ocorrência das 27 unidades da federação.

A forma da agressão varia conforme a idade da vítima. A violência doméstica, praticada por um conhecido, é mais comum entre crianças. Da mesma forma, a violência sexual. Adolescentes morrem, majoritariamente, fora de casa, vítimas da violência armada urbana e do racismo.

Os adolescentes são maioria entre as vítimas de mortes violentas entre os mais jovens. Dos 35 mil óbitos registrados entre pessoas com até 19 anos entre 2016 e 2020, mais de 31 mil tinham idade entre 15 e 19 anos. Segundo dados disponíveis na maioria dos estados, houve um pico entre 2016 e 2017, que vem caindo, voltando aos patamares dos anos anteriores.

No entanto, no mesmo período, aumentou o número de crianças de até 4 anos vítimas de violência letal – o que acende novo sinal de alerta. Nos 18 estados para os quais se dispõem de dados completos para a série histórica, as mortes violentas de crianças de até 4 anos aumentaram 27% de 2016 a 2020.

Crianças e adolescentes pretos

Do total dessas crianças com até 9 anos, 56% eram negras, 33% eram meninas, 40% foram assassinadas dentro de casa, 46% das mortes ocorreram pelo uso de arma de fogo e 28%, pelo uso de armas brancas ou por “agressão física”. As estatísticas mudam conforme as faixas etárias avançam.

Meninos e adolescentes negros são as principais vítimas. A faixa etária dos 10 aos 14 anos marca a transição das agressões domésticas para a prevalência da violência urbana. É quando começam a predominar mortes fora de casa, por arma de fogo e com autor desconhecido.

Quando os adolescentes chegam à faixa dos 15 aos 19 anos, essa transição no perfil da violência letal está consolidada. A partir daí, 90% das vítimas de mortes violentas são meninos e 80% deles são negros. São, inclusive, assassinados em uma proporção significativa pela ação de policiais.

Em 2020, nos 24 estados em que há dados – exceto Bahia, Distrito Federal e Goiás –, 787 crianças e adolescentes de 10 a 19 anos foram identificadas como tendo morrido em decorrência de intervenção policial (MDIP). Isso representa 15% do total das mortes violentas intencionais nessa faixa etária, e indica uma média de mais de duas mortes por dia no Brasil.

Crianças e adolescentes violados

Por sua vez, o crime de violência sexual vitima prioritariamente a infância e o início da adolescência. Aqui, o estudo encontrou falhas nos dados de 2016 e, por isso, a análise aborda o período entre 2017 e 2020. Nesses quatro anos, foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano, ou 123 ocorrências violentas por dia. Crianças de até 10 anos foram 62 mil das vítimas nesses quatro anos – ou seja, um terço do total.

As meninas são a grande maioria dos alvos de violência sexual – quase 80%, a maioria entre 10 e 14 anos, sendo 13 anos a idade mais frequente. Para os meninos, o crime se concentra na infância, especialmente entre 3 e 9 anos. A maioria dos casos, em ambos os sexos, são cometidos por pessoas conhecidas.

Em 2020, primeiro ano da pandemia de covid-19, houve queda no número de registros de violência sexual. Foram 40 mil na faixa etária de até 17 anos em 2017 e 37,9 mil em 2020. Mas isso não quer dizer que houve abrandamento da situação. Ao contrário.

O advogado Ariel de Castro Alves, membro do Instituto Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e ex-integrante do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), afirma que o que ocorreu, na prática, foi a subnotificação. “Os casos de violência doméstica muitas vezes são verificados pelos educadores nas creches e escolas, que por sua vez encaminham as denúncias ao conselhos tutelares e delegacias”, disse.

Sobrecarga dos serviços

Segundo ele, há alguns poucos serviços de saúde dos municípios que fazem a escuta, por meio de psicológicos e assistentes sociais. “Porém são bastante sobrecarregados, e demoram para marcar as oitivas das crianças. Quando marcam, muitas já não querem tratar da violência sofrida. As delegacias sequer costumam pedir para a Justiça criminal medidas protetivas às crianças, apesar de o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) prever as medidas de proteção, como na lei Maria da Penha.”

Ariel, que preside o Grupo Tortura Nunca Mais, vê a cada dia o fechamento e o desmonte de programas e serviços em defesa da infância e juventude, cuja tendência é agravar ainda mais o problema. Para se ter uma ideia, o governo Bolsonaro não publicou o relatório do Disque 100, o que a exemplo de outros anos deveria ter acontecido em maio.

Além disso, foram desativadas várias comissões federais voltadas ao enfrentamento ao abuso e a exploração sexual e trabalho infantil. Tentaram desativar o Conanda, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou a medida, após ações de entidades.

Fora prefeitos que têm atentado contra os direitos da infância e da juventude. “Em São Bernardo promovem atentados aos direitos. Agora ameaçam de despejo O Projeto Meninos e Meninas de Rua e de extinção da Fundação Criança. Em anos anteriores desativaram outros programas sociais voltados à juventude, como a Casa do Hip Hop, a Coordenadoria de Juventude e Programa de Educação ao Trabalho (Peat). No âmbito federal, programas como Projovem, que estimulavam a empregabilidade de jovens, como aprendizes, estagiários e no primeiro emprego, criados no governo Lula, foram desativados no governo Temer.”

Recomendações

Para aos autores do Panorama da Violência Letal, não se pode mais justificar nem banalizar a violência. Cada vida importa, e cada criança, cada adolescente deve ser protegido de todas as formas violências. Não se pode normalizar as mortes e a violência sexual, é preciso enfrentar esses crimes

Toda pessoa que testemunhar, souber ou suspeitar de violências contra crianças e adolescentes deve denunciar. Proteger é responsabilidade de todos

Capacitar os profissionais que trabalham com crianças e adolescentes. Eles são fundamentais para prevenir, identificar e responder às violências contra a infância e a adolescência. Ampliar a implementação da Lei 13.431, voltada à escuta protegida de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência.

Trabalhar com as polícias para prevenir a violência. Investir em protocolos, treinamentos e práticas voltadas à proteção de meninas e meninos. Garantir a permanência de crianças e adolescentes na escola

Entendendo a escola e os profissionais da educação como atores centrais na prevenção e resposta à violência.

Para prevenir e responder à violência, é importante garantir que crianças e adolescentes tenham acesso a informação, conheçam seus direitos, saibam identificar diferentes formas de violência e pedir ajuda.

Responsabilizar os autores das violências. Garantir prioridade nas investigações sobre violências contra crianças e adolescentes.