crise humanitária

‘Se eu tivesse 1% de esperança de que a guerra iria acabar, não sairia do país’, diz sírio

Refugiado, o médico sírio Mohamed chegou ao Brasil com a família no Natal de 2013 e relata não ter esperanças de que seu país irá se recuperar

Guilherme Santos/Sul21

Mohamed: “Essa guerra nunca vai acabar, não vejo nenhuma solução para acabar”

Sul 21 – Quando recebeu a aprovação do pedido de refúgio no Brasil, Mohamed Feras Al-Lahham não sabia quase nada sobre o país. Ele brinca que “sabia” que a capital era Rio de Janeiro, mas não tinha a informação de que língua era falada e como era a vida aqui. Com sua mãe, dois irmãos e duas irmãs, ele tinha acabado de sair do que descreve como um inferno: a Síria tomada pela guerra. Sem possibilidade de continuar lá, partiram rumo ao Líbano, onde começaram a procurar asilo em diversas embaixadas. Mesmo sem conhecer o Brasil, ao receber a aprovação, a família não hesitou. Decidiram morar em Curitiba, seguindo pesquisas e a indicação do funcionário do consulado, e rumaram para a capital paranaense, onde chegaram no Natal de 2013.

Dois anos depois, Mohamed é fluente em português e está tentando conseguir revalidar seu diploma em Medicina e exercer a profissão no país. Ele atualmente está realizando um estágio em Porto Alegre, o qual irá concluir em maio do ano que vem e, a partir daí, pretende conseguir atuar como médico no Brasil. Quando isso acontecer, deve retornar para Curitiba, onde ainda está sua família.

A situação em seu país de origem é devastadora e Mohamed não esconde a tristeza e a nostalgia ao falar da Síria, atualmente destruída pela guerra que começou em 2012. Antes disso, ele não tinha ideia de que algum dia fosse precisar deixar seu lar. “Dormimos numa realidade e acordamos em outra. A guerra começou em um país onde nós nunca pensamos que isso fosse acontecer, nunca”, relata.

Na capital gaúcha, ele participou do evento “Imigrantes e Refugiados: como garantir seu acesso à cidade?”, promovido pelo Grupo de Apoio a Refugiados e Imigrantes (GAIRE) do Serviço de Assessoria Jurídica Universitária (SAJU) da UFRGS, onde contou sua trajetória e disse que procura sempre participar de mesas como esta para trazer mais informações sobre a situação da Síria e dos refugiados ao Brasil. “O povo brasileiro tem que saber o que está acontecendo lá”, defende. Após o evento, ele conversou com o Sul21.

Como vocês fizeram para sair da Síria? É fácil passar pelas fronteiras do país?

Por causa da guerra, a Síria é um país isolado, não tem mais aviões, não tem mais aeroportos, não tem mais embaixadas, não tem mais nenhuma relação com o mundo exterior. É um pais muito dividido, o governo não está controlando as fronteiras da Síria. Cada pedacinho da fronteira é controlado por um grupo ou outro. A Síria tem fronteiras com muitos países, tem fronteira com a Turquia, com o Iraque, com a Jordânia, com a Palestina, com o Líbano, daí o governo está controlando só um pedacinho da fronteira com o Líbano, mas as outras fronteiras são controladas por grupos diferentes. Por exemplo, no norte com a Turquia tem o Estado Islâmico, o Exército Livre, os terroristas, a Al-Qaeda. Tem também os curdos, que estão controlando as fronteiras da Turquia com o Iraque. A maioria agora está sendo controlado pelo Estado Islâmico, que está controlando mais de 50% do território da Síria. O governo não está controlando mais do que 20% do território. Ele só está dominando a capital, Damasco, e duas ou três cidades do litoral.

Então para sair da Síria, você tem a opção de ou entrar na região de um dos grupos, para pedir permissão para ir à Turquia, por exemplo, ou você tem que sair pelo Líbano, que ainda está controlado pelo Exército Sírio nas fronteiras, então eu fui por lá com a minha família. Aí eu cheguei até Beirute, fiquei no hotel com a minha família.

“O único objetivo era: temos que sair de lá. Tem que sair, não tem outra opção. Para onde sair? Não importa”

Como vocês tomaram a decisão de sair da Síria?

Foi porque a vida na Síria estava um inferno, literalmente. A qualquer momento você pode morrer, ouvíamos os sons das balas da guerra, das bombas, a cada segundo. Não tem luz, não tem água, não tem combustível, não tem nada. Não tem comida, não tem nada para viver. É muito complicado, aí o único objetivo era: temos que sair de lá. Tem que sair, não tem outra opção. Para onde sair? Não importa. Aonde vamos? Não importa. Nós vamos viver ou morrer? Não importa. O mais importante é sair do país, aí nós tomamos a decisão. Vendemos tudo. Antes da guerra eu tinha uma vida muito boa, eu tinha meu consultório, meu carro, uma namorada, tudo. A vida estava muito boa. Mas, de repente, tudo mudou.

Dormimos numa realidade e acordamos em outra. A guerra começou em um país que nós nunca pensamos que fosse acontecer isso, nunca. Aí foi obrigatório vender tudo, por menos de 10% do valor, mas não tinha opção. Quando chegamos em Beirute, no hotel e começamos a pensar, porque antes não pensávamos em nada. Só em como sair de lá, porque pra sair é muito difícil. Vim com a minha mãe e meus dois irmãos e duas irmãs. A guerra não deixa opções. Aí em Beirute começamos a pensar: “O que nós vamos fazer agora?”.

Já tem muitos refugiados lá, não é mesmo?

Sim, já são mais de dois milhões no Líbano. Aí pensamos no que íamos fazer. Tinha muitas pessoas que estavam pegando barcos para ir para a Europa. Da Turquia, depois para a Grécia, mas metade delas estava morrendo, havia 50% de chances. Eu prefiro morrer na Síria, na minha casa do que morrer com a minha família no mar. Aí comecei a fazer pedido de refúgio para muitos países, Estados Unidos, Canadá, Alemanha. Eu visitei a Alemanha muitas vezes, eu falo alemão, francês, inglês e espanhol, além de árabe. Aí fui na embaixada da Alemanha, disse que queria ir para lá, que sou médico, meu irmão é dentista, minha irmã é farmacêutica, mas não teve como. Teria que me registrar e aguardar e quando chegasse meu turno, decidiriam se iam me dar o visto ou não. Mas até isso acontecer seria um ou dois anos. É muito complicado. Aí me chamaram para a embaixada do Canadá, aí fui lá e eles me disseram que iam me dar o visto, mas sem a família. Aí eu disse que não, que preciso de toda a família, aí nos chamaram da embaixada do Brasil.

“Na cultura árabe, o mais velho é tipo o mentor. Se eu tivesse medo, todo mundo teria medo”

E finalmente vieram para cá…

Sim. Quando eles nos chamaram na embaixada, minha irmã disse “Mas onde fica o Brasil?”, “Eles falam o quê no Brasil?”, “O que tem lá?”. Aí eu disse que tinha qualquer coisa melhor do que aqui. Aí fui lá com a minha família, eles fizeram entrevista com a gente, botaram o visto nos nossos passaportes, aí eu falei com a embaixada, disse que não sabia para onde ir no Brasil. O funcionário de lá nos deu um conselho de ir para Curitiba, que é uma cidade no sul, ecológica, segura, limpa, essas coisas. Aí voltamos para o hotel, fizemos pesquisa para Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Foz do Iguaçu, muitas cidades, e a decisão final foi Curitiba.

Pegamos o voo Beirute – Qatar – São Paulo – Curitiba, e chegamos a Curitiba no dia de Natal de 2013. Nós chegamos lá e foi um choque, porque no Líbano estava muito frio, e em Curitiba estavam 40 graus. Chegamos lá, no aeroporto falei com a moça em inglês e ela me disse que falava apenas português. Eu pensei: “Agora os problemas vão começar”. Mas estava um sentimento, uma sensação que eu nunca senti, muito estranho. Eu cheguei com a minha família em uma cidade que eu não conhecia ninguém, eu não falava a língua, não sabia para onde ir. Ao mesmo tempo, eu não podia demonstrar isso, porque na cultura árabe, o mais velho é tipo o mentor. Se eu tivesse medo, todo mundo teria medo. Se eu for seguro e feliz, todo mundo vai se sentir seguro. Então eu sempre pretendi mostrar que estava seguro, mas não estava. Estava com muito medo, mas não falei nada. Quando eu ouvi as pessoas no aeroporto falando em português eu pensei “Meu Deus do céu, eu nunca vou aprender essa língua”. É muito diferente.

E como foi para aprender português?

Foi a partir da Universidade Tecnológica do Paraná. Eu fui procurar aulas em diversos lugares, mas nos ofereciam aulas duas horas por semana, nos sábados. Eu não podia estudar apenas duas horas por semana, eu queria estudar todos os dias, eu precisava realmente aprender a língua para viver aqui. Então encontrei essa universidade, que estava ajudando os refugiados, mas em uma escala menor. Eles não podem abrir as portas para todos os refugiados, mas o mais importante que eles estão fazendo é disponibilizar aulas todos os dias, por duas horas, e é assim que se consegue aprender uma língua.

E agora vocês já estão morando em um local fixo?

Sim, agora graças a Deus estamos morando em um apartamento perto do centro de Curitiba.

Apesar da barreira linguística, a recepção das pessoas no Brasil tem sido boa?

Foi muito boa. Os brasileiros são muito acolhedores. Se tem uma coisa que eu gostei foi do povo brasileiro. Eles sempre têm aquela vontade de ajudar, sabe. Essa é uma coisa que eu respeitei muito.

“Eu tenho uma relação muito boa com os pacientes, eles gostam de mim”

Os seus familiares estão conseguindo exercer as profissões deles lá em Curitiba?

Agora, depois de dois anos, mais ou menos. Melhor do que antes, mas mais ou menos. Meu irmão é dentista, validou o diploma dele e está trabalhando em uma clínica com um dentista que ele encontrou e que o está ajudando. Minha irmã é farmacêutica, ela ainda está na batalha, ainda não validou. Meu irmão é Engenheiro de Petróleo, ainda está tentando revalidar. A minha outra irmã fez vestibular agora, para Arquitetura. Eu estou ainda lutando para revalidar meu diploma, porque tenho que terminar o estágio.

E com os pacientes lá no hospital, como tem sido? Vocês conseguem se entender bem?

A questão do sotaque sempre é engraçada. O mais importante entre o médico e o paciente é entender o que tem, porque se você não entender a queixa, o problema do paciente, você nunca vai tratá-lo. E eu acho que agora eu estou conseguindo entender o paciente, o que ele tem e eu acho que o paciente consegue me entender, mas mesmo que eu more por muito tempo no Brasil, eu nunca vou conseguir falar como um brasileiro. Tenho 34 anos, então preciso de mais tempo para conseguir, mas sempre falam “ah, com esse sotaque, você é da Argentina ou Cuba?”. E eu digo que sou da Síria e ficam um pouco surpresos. Mas eu tenho uma relação muito boa com os pacientes, eles gostam de mim.

Você acha que o dia a dia da profissão lá e aqui são parecidos?

Bem parecido. A medicina no mundo todo vem da mesma raiz, especialmente com a globalização. Os Estados Unidos estão controlando a medicina no mundo todo, então os livros do que eu estava estudando na Síria são as mesmos que aqui, mesmo na Europa e nos outros países. A medicina não tem muita diferença. A única diferença que eu vi foi a língua, que todo mundo fala português. Mas, fora isso, é quase a mesma coisa.

Como é que tem sido a forma que os jornais têm retratado os refugiados, os sírios? Tu tens acompanhado nos noticiários? Aqui no Brasil, tu achas que o assunto é suficientemente abordado?

Acompanho todos os dias, e são muito poucas notícias. Tem poucos canais de notícias no Brasil, uns dois ou três, e não tem muitos canais que trazem as notícias que não são em português. Eu que não sou brasileiro e quero saber o que está acontecendo do outro lado do mundo, tem só esses dois ou três canais de informação de notícias. Esses dois ou três canais trazem uma mesma matéria, bota na televisão e tchau. Por exemplo: quando aquele menino sírio se afundou no mar na Turquia, eles fizeram matérias sobre os refugiados, o que está acontecendo. E depois diminuiu a onda. Depois você não vê nada, mas a guerra continua. A guerra tem notícias todos os dias, muitas notícias, muitas novidades do que está acontecendo lá na Síria, é uma coisa muito importante e é muito perigosa, porque é uma coisa que tem efeito no mundo todo. Mais de um milhão de refugiados entraram na Alemanha por causa disso. Mais de 4 mil sírios entraram no Brasil por causa disso.

Agora eles não falam nada sobre a guerra na Síria, mas por exemplo: se Obama falar alguma coisa que hoje os aviões americanos bombardearam 10% do poder do Estado Islâmico, eles vão botar. Mas a guerra na Síria não é só o Estado Islâmico, a Síria é muito complicada. O povo brasileiro tem que saber o que está acontecendo lá. Tem muitos grupos, muitos partidos, muitos políticos árabes estão influenciando muito a guerra lá, estão apoiando. A Arábia Saudita tem um braço na guerra na Síria. Qatar, Turquia, tem muitas coisas. A Rússia entrou e sobre tudo isso tem que ser falado, porque ninguém fala.

“Quem fez essas coisas na França não foram muçulmanos, porque a religião islâmica nunca, nunca diz que tem que fazer isso”

Tu acreditas que aquilo que está acontecendo na Europa ou nos EUA recebe mais atenção da mídia do que o que acontece no Oriente Médio, na África ou na Ásia?

É isso, exatamente. Tem uma parte que está controlando a mídia. Esse é o controle da mídia e tem sempre alguém que está controlando, que diz o que é importante. Ninguém pode dizer o que é importante. O que está acontecendo todo mundo tem que saber, em qualquer lugar no mundo, mas o problema é assim: a Globo não bota as notícias da Síria todos os dias, botam uma vez por semana. Fazem reportagem ou alguma coisa, mas fora disso, não. Na verdade eu estou acompanhando as notícias da Síria pelas redes sociais, pelas páginas do Facebook, no Twitter, as páginas de noticias em árabe, em que pessoas estão dentro da guerra estão escrevendo o que está acontecendo. Assim eu estou conseguindo saber. Pelo menos 50% disso a pessoa tem que saber.

Desde os ataques na França, vocês sofreram algum tipo de preconceito aqui no Brasil?

Sim. Não só no Brasil. Esse é um assunto muito amplo. Quem fez essas coisas na França não foram muçulmanos, porque a religião islâmica nunca, nunca diz que tem que fazer isso. Não tem nada a ver com o Islã isso e lá na França tem muitos muçulmanos que estão vivendo lá em paz faz muitos anos e eles nunca fizeram nada. A religião do Islã significa paz com todo mundo, mas o problema é que a mídia está mostrando que são muçulmanos, radicais, mas muçulmanos, e que eles estão fazendo isso. Então, todos os muçulmanos no mundo seriam assim, por essa lógica. Mas tem mais de 2 bilhões de muçulmanos no mundo. Se todos os muçulmanos fossem assim, eles iam invadir todo o mundo. Mas o problema é a mídia. Eu boto a culpa na mídia e no povo, que generaliza quando vê na TV. Não pode ser generalizado esse estereótipo. Muitos muçulmanos sofreram com xenofobia. Acho que, no Brasil, os muçulmanos sofreram menos preconceito, porque no Brasil as pessoas são ainda abertas, eles aceitam os outros. É um país de imigração, mas, por exemplo, tem países em que muçulmanos tiveram que ficar sem sair de casa.

Você conseguiu manter contato com alguém lá na Síria ou que foi para outro país?

Sim, sempre. Pelo Facebook, Twitter, Whatsapp.

E agora estão espalhados pelo mundo?

Sim, sim. Eu acho que não tem aspecto positivo nenhum, a guerra, mas se tiver um aspecto positivo na guerra, eu diria que é que os sírios puderam se espalhar pelo mundo todo. Talvez eles possam mostrar o que é o povo sírio, as tradições, porque muitas pessoas antes não nos conheciam, antes dessa guerra. Ninguém sabia onde ficava a Síria, mas agora todas as pessoas sabem.

“Até hoje estão depositando bilhões de dólares para destruir a Síria e quem fez isso, quem gastou tanto dinheiro, nunca vai desistir”

E como acabar com a guerra? Como trazer a paz de volta? É possível reconstruir a Síria?

Se eu tivesse 1% de esperança de que a guerra iria acabar, eu nunca sairia do país, mas essa guerra nunca vai acabar. O Estado Islâmico está com mais de 80 nacionalidades lutando pela bandeira deles e muitos países árabes estão apoiando grupos na Síria. EUA e Rússia estão apoiando. Até hoje, estão depositando bilhões de dólares para destruir a Síria e quem fez isso, quem gastou tanto dinheiro, nunca vai desistir. Essa guerra nunca vai acabar, não vejo nenhuma solução para acabar.

Vocês chegaram a conhecer algum sírio aqui ou em Curitiba?

Sim, em Curitiba. Lá tem mais de 300 sírios. Quando tem eventos para refugiados, eu sempre tento falar, porque todos estão sofrendo.