Justiça a paulista

TJ julga desembargadora por soltar presos que já cumpriram penas

Para a Pastoral carcerária, decisões da magistrada Kenarik Boujikian são legais e justas, mas “confrontam-se com a mentalidade punitivista e encarceradora” de membros do Tribunal de Justiça

Divulgação

Trajetória de Kenarik é marcada pela defesa dos direitos humanos, com uma postura combativa

São Paulo – O Tribunal de Justiça de São Paulo julga hoje (27), a partir das 13h30, a desembargadora Kenarik Boujikian por ter expedido alvarás de soltura para dez réus que estavam presos preventivamente há mais tempo do que a pena estabelecida na sentença, seguindo os princípios jurídicos brasileiros.

Conhecida por sua atuação na defesa dos direitos humanos e por ser uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia (AJD), a magistrada foi acusada de “usurpar a competência do juízo” com sua decisão. Os alvarás de soltura foram concedidos por Kenarik na condição de relatora dos processos, sem que a 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça analisasse os casos.

Kenarik foi processada em agosto de 2015 por um de seus colegas, Amaro José Thomé Filho. O desembargador entrou com uma representação na Corregedoria do TJ-SP acusando a magistrada de “violação do princípio da colegialidade”. Se a representação for aceita pelo TJ, será aberto procedimento disciplinar por delito funcional contra a desembargadora, que passaria a estar sujeita a punições que vão de advertência a aposentadoria compulsória.

“Ora, não há como manter presa cautelarmente uma pessoa por mais tempo do que a pena recebida só porque a apelação ainda não havia sido julgada! A situação kafkiana desses réus só revela o absurdo do nosso sistema de justiça criminal, em que um recurso de apelação demora tanto para ser julgado que a pessoa corre o risco de cumprir integralmente a pena antes mesmo do resultado dessa apelação, que poderia reduzir a sua pena ou absolvê-lo da acusação”, diz a Pastoral Carcerária, em nota pública de apoio a magistrada.

A trajetória de Kenarik é marcada pela defesa dos direitos humanos. Em novembro de 2013, por exemplo, quando o juiz que coordenava as detenções dos réus do chamado mensalão foi afastado da Vara de Execuções Penais do Distrito Federal após desentendimento com o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, a magistrada assinou uma nota na qual criticava o “coronelismo judiciário”, caso se comprovasse que Barbosa tivesse forçado a saída do juiz. Na época, o Tribunal negou qualquer problema entre os dois.

“Tudo indica que as decisões da Sra. Kenarik, questionadas na Corregedoria, embora legais e justas, confrontam-se com a mentalidade punitivista e encarceradora de outros membros do Tribunal de Justiça de São Paulo – infelizmente, muito presente em todo o nosso sistema de justiça criminal”, afirma a nota da Pastoral Carcerária. “Observa-se que alguns operadores do Direito, em total desacordo com os direitos e garantias fundamentais, promovem obstinadamente a pena de prisão como panaceia dos problemas sociais, dentre eles a violência urbana. Fazem da prisão regra, quando ela deveria ser exceção (ultima ratio), como prevê o nosso ordenamento jurídico.”

O Brasil apresenta a maior taxa de crescimento da população prisional, atualmente a quarta maior do mundo, com 607.731 pessoas presas em 2014, de acordo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça (MJ). O total só é inferior à quantidade de presos nos Estados Unidos, na China e na Rússia.

Levando em conta dos dados do Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês), do King’s College, de Londres, a situação seria ainda mais alarmante: com 715,6 mil pessoas presas, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos (com 2,2 milhões) e China (1,7 milhão).

“Além disso, nosso sistema de justiça criminal é seletivo. Em regra, tais presos são jovens de baixa renda e escolaridade, encarcerados em unidades superlotadas sem as mínimas condições de higiene e de estrutura do espaço, cumprindo pena de forma degradante, em um cenário onde violações de direito são regra e o cumprimento da Lei de Execução Penal e das garantias constitucionais, exceção”, diz a Pastoral Carcerária.

Com informações da CartaCapital e do Viomundo