CARLOS AUGUSTO

‘A gente planejava casar e voltar para o Piauí’, conta viúva de camelô morto por PM

Claudiane Silva Lopes diz que marido aguardava apenas convocação de serviço público para que recomeçassem a vida no interior piauiense com as três filhas

FERNANDO ZAMORA/FUTURAPRESS/FOLHAPRESS

Claudiane conviveu com Carlos Augusto por 12 anos, até o último dia 18, quando ele recebeu um tiro fatal

São Paulo – Planos para um casamento em uma igreja evangélica em São Paulo e, em seguida, a volta em definitivo para a terra natal, o Piauí, até o final deste ano. Esse era o sonho cultivado pelo casal de migrantes nordestinos Carlos Augusto Muniz Braga, de 30 anos, e Claudiane Silva Lopes, de 31. A data estava em aberto, pois dependia apenas de quando o rapaz estaria autorizado a assumir uma vaga de um concurso público, no qual havia sido aprovado antes mesmo de se mudar para São Paulo, para atuar como agente da antiga Superintendência de Campanha de Saúde Pública (Sucam), atualmente conhecida como Fundação Nacional de Saúde (Funasa).

Depois de mais de 12 anos de um imbróglio jurídico e espera pela convocação,Carlos Augusto soube que ela poderia ocorrer nas próximas semanas.“A gente veio para São Paulo, mas ele sempre ficava falando em voltar quando fosse convocado (no concurso). Sabe, a gente diz que o sonho de todo nordestino é vir pra cá, mas depois voltar pra lá”, afirma Claudiane. “A gente queria voltar ainda neste ano e planejava casar na igreja evangélica. E depois voltar para o Piauí. Ia ser em dezembro, já tava tudo preparado”, conta.

Apesar de juntos havia mais de 12 anos, o casal evangélico jamais pôde realizar uma cerimônia religiosa para consagrar sua duradoura união, que havia começado ainda em Simplício Mendes, a 385 quilômetros ao sul de Teresina. Foi no pequeno município de12.077 habitantes que Carlos Augusto e Claudiane, que é da cidade de Picos, se conheceram por volta de 2002. À época, ela trabalhava como feirante, atividade que aprendeu e exerciacom a mãe desde criança, e viajava com frequência para cidades do sudeste piauiense. Eu estava vendendo verdura e salgado. Aí, ele encostou na barraca querendo um salgado e a gente começou a conversar. Quando era de noite, eu ia pra casa, mas fiquei na praça esperando uma amiga. Encontrei com o Augusto e começamos a namorar no outro dia. Vivemos juntos até quinta-feira passada (dia 18).”

Claudiane lembra que, de início, o namoro teve oposição das duas famílias, já que ela já tinha um filho, fruto de um relacionamento casual com outro homem, mas ao final, o jovem casal conseguiu dobrar a resistência dos parentes. Viviam juntos em Simplício Mendes por dois anos, até que CarlosAugusto decidiu tentar melhorar a vida em São Paulo, tendo partido em setembro de 2004. “Ele disse que tinha familiares e que iria mandar me buscar depois de um mês.Trinta dias depois, o companheiro enviou dinheiro para que ela pudesse viajar para a capital paulistana.

Mas a vida do casal na cidade grande não foi nada fácil. Segundo Claudiane, o marido teve dificuldades para encontrar emprego no mercado formal, tendo conseguido apenas um trabalho por curto período na rede de supermercados Futurama. “Ele ficou um mês só. Depois mandaram ele ir embora.”

A experiência como feirante no Piauí levou Claudiane para o mercado informal em São Paulo. Ela diz que começou a atuar como vendedora ambulante nas ruas da Lapa, zona oeste de São Paulo, ainda em 2004, depois de ter conhecido conterrâneos que exerciam a atividade na região. Logo, ela convenceria o companheiro Carlos Augusto a trabalhar na área.“Eu não tenho estudo e tive de trabalhar desde cedo. Mas o Carlos não, ele era inteligente, estudou. Ele só foi trabalhar na rua quando não tinha mais jeito para a gente.”

Em São Paulo, o casal viveu em uma casa no bairro do Sol Nascente, na zona norte de São Paulo. Eram Carlos Augusto, Claudiane e as filhas Cláudia, Clara e Maria Eduarda, atualmente com 12, 9 e 4 anos, respectivamente.

Nas horas vagas, Claudiane diz que o casal gostava de frequentar os cultos da igreja evangélica Deus É Amor, ali mesmo no bairro. Conta que todos os domingos estavam por lá e gostavam de ouvir canções do gênero gospel, em especial dos cantores Anderson Freire e Bruna Karla, dois dos mais populares artistas desse estilo.Aproveitando o ensejo, ela mostra em seu telefone celular algumas das canções que o casal mais gostava de ouvir quando estava junto, comoRaridade” e “Identidade”. Ouve só que lindo”, pede para o repórter e começa a cantarolar trechos das letras.

Com dez anos de vida árdua em São Paulo, o sonho do casal de retorno para o Piauí estava próximo quando Carlos Augusto soube que finalmente ele poderia ser convocado para trabalhar como agente de saúde da Funasa em Simplício Mendes. Era questão de tempo que ele fosse informado de quando ele poderia começar o novo trabalho e a nova vida. Enquanto isso, ele tinha comemorado 30 anos de vida no último dia 15.

Três dias depois, ele planejava alterar o tipo de habilitação de sua carteira de motorista.Ele veio aqui para a Lapa comigo, mas ele não ia trabalhar. Ele queria mudar a carta dele para carro e moto. Então, ele veio resolver isso e eu ia trabalhar. Só que na hora de pegar a Clara na escola, ele é que ia. E aí, aconteceu o que aconteceu.”

No caminho para buscar a filha, Carlos Augusto viu um tumulto na Rua Doze de Outubro. Policiais militares daOperação Delegada que patrulhavam os arredores em busca produtos sem documentação haviam discutido e, em seguida, imobilizado violentamente um ambulante. Logo, o lugar ficou tomado de outros vendedores e curiosos.Carlos Augusto testemunhou de perto a ação e, aproximando-se dos três PMs,começou a registrá-la em seu telefone celular. Ele e outros cinco trabalhadores pediram para o policial militar não apontar a arma para o trabalhador imobilizado. Claudiane também estava presente e pedia para que a polícia soltasse o ambulante.

Sentindo-se intimidado, o soldadoHenrique Dias Bueno Araújo pegou seu spray de pimenta e ameaçou os que estavam ali o cercando e pedindopara que guardasse sua pistola.40. Carlos Augusto, então, se aproximou e tentou pegar o spray do policial, que revidou com um tiro em sua cabeça. O ambulante teve tempo apenas de caminhar alguns metros antes de cair estirado no meio da rua. Socorrido por uma ambulância do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), entrou em óbito a caminho de chegar ao Hospital das Clínicas.Sinto revolta, tristeza. A gente sai de casa para trabalhar, a gente é morto e ninguém faz nada”, lamenta Claudiane.

Ela conta que não teve mais forças para voltar para a casa no Sol Nascente e está vivendo temporariamente no Parque São Domingos, também na zona norte. Não tenho mais condições de ir lá. Não consegui ainda entrar enão pretendo ir lá tão cedo.” Também diz que tem tentado esconder a tristeza na frente da filha Clara. “Eladisse que não ia chorar se eu prometesse que eu não chorasse. Então, sempre corro para o banheiro pra chorar. Tem que buscar força em Deus”, acredita.

Com a morte do companheiro, Claudiane não tem ideia se deixará ou não São Paulo, como planejava com Carlos Augusto, mas garante que não partirá antes de que consiga alguma justiça.

Durante o ato em repúdio à morte do marido, na última quinta-feira (25), Claudiane preparou diversos cartazes para o evento. Ela escolheu carregar um com os dizeres “Carlos Augusto Saudades. Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amar”. Pegando o seu telefone celular, Claudianemostraque o fragmento da letra, da dupla Vinicius de Moraes e Antônio Carlos Jobim, havia sido a última mensagem de texto que Carlos Augusto havia mandado para ela.“Ele gostava de me levar no karaokê e sempre cantava essa música. Ele sempre me falava e escrevia para mim: ‘Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida vou te amar.’”

No decorrer da caminhada, gritou em diversos momentos com os manifestantes o nome de Carlos Augusto, bem como chamou de “assassino” o PM que tirou a vida do companheiro. Quando houve uma parada em frente ao local em que foi cometido o homicídio, os amigos do ambulante propuseram que fosse respeitado um minuto de silêncio. Claudiane retirou 25 velas de uma sacola, colocou-as no asfalto e acendeu uma por uma. Quando terminou, foi aos prantos e acabou amparada por uma amiga. Dali, os manifestantes caminharam mais um pouco, até voltarem para a praça Professor José Azevedo Antunes, onde o ato se encerraria.

No final, Claudiane não fez nenhum discurso para os presentes. Apenas pediu para cantar uma canção que compartilhava com Carlos Augusto nestes anos que viveram em São Paulo. Encabulada, desculpou-se por não conhecer a letra de cor, mas que mesmo assim iria cantá-la. Pegou o telefone celular, selecionou a canção “Deixe a lágrima rolar”, sucesso na voz da cantora Bruna Karla, e começou a cantá-la. “Hoje a noite foi fria / O vento tentou me levar / Angústia me feriu / A dor mais forte do que eu.”

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