Violência

Novo ouvidor das polícias de São Paulo quer reconquistar confiança da sociedade

Júlio César Fernandes Neves terá a missão de encaminhar aos órgãos competentes denúncias de abusos policiais. 'É um cargo espinhoso', admite. 'Que Deus me ajude'

Rodrigo Paneghine/SSP

Fernandes Neves lembra que segurança é um direito humano e que cidadãos devem ajudar na sua garantia

São Paulo – Aos 59 anos, o advogado Júlio César Fernandes Neves exerce as funções de ouvidor das polícias do estado de São Paulo desde o final de dezembro do ano passado. Sua cerimônia de posse, porém, ocorreu apenas na manhã de hoje (22), no apertado e caloroso anfiteatro da Secretaria de Segurança Pública, no centro da capital. Diante de autoridades, Fernandes Neves prometeu recuperar os “bons tempos” da Ouvidoria. E pediu a ajuda de Deus para desempenhar a tarefa.

“A segurança é um direito humano”, defendeu em seu discurso, visivelmente emocionado, citando passagens da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição de 1988. “Não importa qual seja sua condição, todo ser humano tem direito à segurança. Para garantir esse direito, precisamos da contribuição direta dos cidadãos. A Ouvidoria recebe denúncias visando ao aperfeiçoamento dos órgãos de segurança, e à punição e mesmo exclusão de servidores inadequados às funções policiais.”

A trajetória política de Fernandes Neves tem origem em organizações contrárias à ditadura que se instalou no país entre 1964 e 1985. Formado em Direito pela Universidade Mackenzie, ainda na faculdade se engajou no movimento pela anistia, em 1978. Em 2005, exerceu as funções de assessor jurídico da mesma Ouvidoria que agora está a coordenar. É ainda membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, motivo pelo qual o cardeal-arcebispo da cidade, dom Odilo Scherer, esteve presente à cerimônia.

“Precisamos ter um relacionamento leal e maduro com a Secretaria de Segurança Pública e com as corregedorias da Polícia Civil e Militar, com o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)”, pediu, na presença dos chefes de cada um desses órgãos. Representantes da sociedade civil também assistiram ao ato. “Aprendi que a Ouvidoria tem que ter ainda a confiabilidade dos movimentos sociais, muitas vezes injustamente criminalizados. E que devemos utilizar dos recursos tecnológicos para ampliar nossa capacidade auditiva.”

A escolha do ouvidor das polícias de São Paulo é feita pelo governador a partir de uma lista tríplice elaborada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). Fernandes Neves terá um mandato de dois anos, prorrogável por mais dois. Basicamente, sua função será encaminhar aos órgãos competentes denúncias de abusos policiais que cheguem aos seus ouvidos. E acompanhá-los, garantindo assim sua correta apuração. O ouvidor pode ainda requisitar informações às polícias e apontar irregularidades.

“É um cargo espinhoso”, disse à RBA, ao lembrar que as forças de segurança paulistas ostentam altos índices de violência. Segundo dados oficiais, em 2013, a PM foi responsável pela morte de 355 pessoas. Em 2012, foram 546 vítimas fatais. “Você tem que pisar em ovos, ter muito bom senso, muita sabedoria e ser totalmente imparcial e justo.” Fernandes Leite começou 2014 trabalhando num caso complicado: a morte de 12 pessoas num bairro pobre de Campinas, chacina que moradores imputam a policiais. O ouvidor viajou até a cidade. “Os indícios eram muito fortes.”

Qual situação o sr. encontrou na Ouvidoria?

A Ouvidoria estava meio submersa há mais de um ano. A pessoa que respondia pela Ouvidoria não tinha mandato. Estava totalmente subserviente ao governo.

Por que isso aconteceu?

Por várias situações. O governo não aceitou nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira lista tríplice enviadas pelo Condepe. O problema apenas se desenrolou agora. Nossa ideia é recuperar o prestígio da Ouvidoria, deixar para trás esse marasmo de hoje, principalmente perante a imprensa. A imprensa sumiu daqui. Ninguém sabia o que estava acontecendo. Era só burocracia. Na verdade, o antigo ouvidor, de acordo com o decreto do governo, ficou respondendo apenas pelo expediente. E não tinha aquela independência que todo ouvidor tem que ter. Portanto, queremos recolocar a Ouvidoria num plano em que ela já esteve, como na época dos ouvidores Benedito Mariano, Firmino Fecchio e Antonio Funari. Também queremos divulgar mais a Ouvidoria no interior. Pretendemos refazer um contrato com a OAB, para que as subseções da OAB possam receber denúncias pela Ouvidoria. Assim, multiplicaremos nossos ouvidos em todo o estado.

A Ouvidoria recolhe basicamente denúncias de abuso policial?

Isso, das três polícias: Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Científica. Nossa expectativa é ter acesso às três polícias para que as denúncias sejam esclarecidas o mais rápido possível. Essa é minha vontade. Esses contatos foram feitos, e os chefes de cada polícia estiveram presentes na minha posse. Também queremos informatizar mais a Ouvidoria para conseguir pescar nas redes sociais denúncias que não chegam à grande imprensa.

O senhor começou a trabalhar com um caso complicado em Campinas, não?

Ainda não havia tomado posse solenemente, mas administrativamente, sim. Fui lá como ouvidor. Estivemos com o delegado responsável e com o secretário de Segurança Pública, Fernando Grella. Acompanhamos o caso de perto, conversamos com os pais de algumas vítimas e sugerimos alguns procedimentos para que não haja uma investigação corporativista. O ouvidor não pode ser policial nem nunca ter sido, justamente para acabar essa possibilidade de que haja investigações corporativistas.

Qual a situação que o senhor encontrou em Campinas?

Os cidadãos comuns da comunidade falaram fundamentalmente, e com muita convicção, que os responsáveis pelas mortes foram policiais militares, porque havia pessoas de coturno e calças de farda. Duas horas antes, um policial foi visto rondando o bairro. De dez pessoas, dez falaram que foram policiais militares. Os indícios eram muito fortes. Foi essa situação que encontrei. Depois, fui à Delegacia Seccional, conversei com o delegado, falei o que eu senti, que era o sentimento do cidadão comum do bairro, que estão com um temor enorme da polícia por causa desses acontecimentos, e da possibilidade que existia em efetivamente terem sido policiais os responsáveis pelas mortes. O delegado já havia escutado a mesma conversa de outras pessoas, e prometeu uma apuração isenta. Um promotor foi designado para acompanhar o caso.

Qual é a competência da Ouvidoria? Vocês recebem as denúncias. E depois?

O ouvidor tem acesso a todas as instituições: corregedorias, Ministério Público, Delegacia Geral… Tudo que recebemos, nós encaminhamos. Se for um crime contra a vida, mandamos para o MP. E acompanhamos até o final, até o policial ser julgado. Se for uma infração menos grave, então mandamos para as corregedorias da Polícia Civil ou Militar. Temos acesso direto aos corregedores para fiscalizar os procedimentos, porque são eles que julgam. Nós analisamos para saber se foi bem apurado ou não. Esse trabalho, sem a Ouvidoria, não existe. A Ouvidoria dá transparência ao processo, porque, caso o ouvidor veja alguma irregularidade, ele vai denunciar. Podemos também dar sugestões.

As instituições não podem sonegar informações para o ouvidor?

Não podem. A gente requisita e eles repassam.

Como o senhor se sente sendo o ouvidor de uma das polícias que mais mata no país?

É um cargo espinhoso. Você tem que pisar em ovos. Tem que ter muito bom senso, muita sabedoria e ser totalmente imparcial e justo, para que você não venha a colher resultados desastrosos. É um cargo que se exerce como missão.

Como avalia a política de bonificação aos policiais implementada pelo governo de São Paulo?

No Rio de Janeiro fizeram isso, e deu certo durante um tempo. Eu acredito que essa política vai diminuir as transgressões cometidas por policiais, porque o dinheiro sempre é envolvente. Mas não sei se funcionará definitivamente ou apenas sazonalmente. Essa medida terá que se estender para sempre para dar certo? A gente não sabe se isso é temporário ou não, porque 2014 é um ano especial, de Copa do Mundo e eleições. Esperamos medidas mais permanentes. Na realidade, eu gostaria que os policiais fossem valorizados com aumentos salariais. De qualquer forma, é mais um argumento para que o policial pense antes de agir, e não aja e só depois pense.

O senhor acha que pode haver subnotificação ou mascaramento de crimes para atingir metas?

Sim, isso pode acontecer. Mas espero que com o tempo seja identificado.