Iniciativa popular

Uruguai: a vitória dos que perderam e a derrota dos que ganharam

Apesar de não conseguir derrubar itens abusivos de lei de LaCalle Pou, referendo resgatou vigor da oposição e fortalece poder de resistência dos movimentos sociais

PIT-CNT
PIT-CNT

Depois de pouco mais de um mês no governo, o presidente do Uruguai, LaCalle Pou e sua coalizão de partidos de direita apresentaram proposta de mudança na legislação. Um instrumento chamado Lei de Urgente Consideração (LUC) teria poder para modificar direitos importantes para a sociedade. Por exemplo, limitar o direito de greve e de participação de professores na definição de estratégias de educação. Ou, então, definir controle (e descontrole) de preços, em especial dos combustíveis. E, ainda, aumentar o poder da polícia e, principalmente, permitir o chamado “gatilho fácil”, que permite a violência e o abuso policial. Enfim, essas são apenas algumas das muitas mudanças previstas nos 476 artigos da Lei de Urgente Consideração.

O instrumento LUC, que até este momento é utilizado em situações excepcionais, em geral relacionados com catástrofes, que necessitavam ação imediata, não exige maioria para aprová-lo. Ao contrário, é preciso uma maioria para rejeitá-lo dentro de um prazo determinado. De outro modo, a medida entra em vigor automaticamente.

Essa estratégia, que não permite o debate, nem público, nem do Congresso, foi muito criticada pelo partido de oposição, a Frente Ampla, e principalmente pela central sindical PIT-CNT. A Frente Ampla e a central decidiram, em pleno período de pandemia, promover um abaixo-assinado em apoio a um referendo para revogar 135 dos 476 artigos da lei.

Depois de quase dois anos, esse movimento – que agregou organizações sociais e populares – conseguiu apoio de mais de 760 mil assinaturas (um terço dos votantes do Uruguai). Desse modo, os uruguaios foram às urnas em 27 de março, mas o referendo decidiu pela continuidade da lei. O “não” à revogação dos 135 artigos venceu por uma diferença de 22.500 votos.

Vitória amarga

A vitória, porém, pode ser considerada amarga para o governo de LaCalle Pou. Ao final da votação, com sorriso amarelo, o presidente limitou-se a comentar o resultado como “uma etapa superada” e que a “lei segue firme”. Além disso, disse na conferência de imprensa que “seu governo mantém a vocação de diálogo com a oposição”, o que não necessariamente é promover acordos.

O governo apostou, primeiro, que a pandemia não permitiria à oposição alcançar os mais de 700 mil votos necessários para habilitar o projeto de iniciativa popular. Além disso, dias antes da votação muito políticos ligados ao governo afirmavam que seriam uma vitória escandalosa, por mais de 100 mil votos.

Do outro lado, Fernando Pereira, então presidente da central PIT/CNT durante o período de coleta de assinatura e atual presidente da Frente Ampla, sempre admitiu que se tratava de um grande desafio. Mas ao mesmo tempo convocou a militância a enfrentá-lo. Na noite de 27 de março, ele foi o primeiro a reconhecer que não se revogariam os artigos.

Porém, longe de chamar o resultado de derrota, agradeceu a toda a militância. Isso porque a movimentação conseguiu recuperar os comitês de base. Integrantes dos movimentos sociais e sindical saíram de porta em porta pedindo voto ao “sim” à revogação dos atigos. Pereira afirmou, então, que “o governo recebeu um sinal poderoso de que não conta com tanto apoio quanto acreditava”. Muitos políticos da Frente Ampla comemoraram o triunfo político, neste processo, sob esse ponto de vista.

Grande brecha social

Nenhum dos lados está equivocado. De um lado, é certo que a lei segue “firme”, como disse LaCalle. Entretanto, o ministro do Trabalho e Previdência do Uruguai, Pablo Mieres, já teve de se manifestar assegurando respeito às Convenções Coletivas de trabalho assinadas por mútuo acordo. E que não pretende aumentar o intervencionismo do ministério com respaldo na LUC.

Por sua vez, o ministro do Interior, Heber Fontana (espécie de ministro da Justiça), se vê obrigado quase todos os dias a responder por casos de abuso policial. Talvez os mesmos que ocorriam antes de a LUC existir, mas que agora são parte do debate público. Finalmente, o próprio presidente tem sido obrigado a adotar medidas para conter a inflação, assim como explicar o aumento de preços de combustíveis. Ou seja, o cenário desfavorável àqueles que “ganharam” o plebiscito está exposto.

Já a oposição comemora melhor desempenho na votação em comparação com as eleições de 2019. Na ocasião, LaCalle Pou ganhou de Daniel Martinez, da Frente Ampla, por 37 mil votos (50,79% a 49,21% no segundo turno). Além disso, cresceu em alguns departamentos (estados), recuperando terreno importante para as próximas eleições do país. Assim como fortaleceu a militância e organização de base, o que permitirá seguir trabalhando independentemente do resultado. Aliás, é possível observar a motivação da militância para as eleições gerais do Uruguai em 2024.

Ainda é cedo para saber qual será o impacto da LUC, que direitos realmente serão fragilizados agora, e quais com o passar dos anos. O certo é que no último ano mais de 100 mil pessoas ingressaram em situação de pobreza, o salário perdeu poder de compra, e o governo não consegue resolver esses problemas com a LUC. Fernando Pereira reconheceu que a LUC, embora aparente trazer “certa ordem” à sociedade, criará uma grande brecha social.


referendo uruguai


Marcio Monzane, bancário, é diretor regional para a América do Sul da UNI Américas, com escritório no Uruguai. A entidade é braço no continente da UNI Global Union, que reúne entidades de 140 países, representando mais de 20 de milhões de trabalhadores dos setores de serviços