pressão de mercado

Os abutres da crise e as raízes das tensões na Argentina

Decisão judicial obtida nos EUA favorece especuladores financeiros e ameaça ainda mais a já fragilizada economia do país vizinho

cc / wikipedia

Cristina e Néstor Kirchner em campanha eleitoral. Estabilidade ameaçada por decisão judicial favorável ao mercado

A eclosão da crise argentina em 2001 era mais que anunciada. Diante de duas crises de hiperinflação – de que o Brasil se safou pela indexação – Carlos Menem, que havia anunciado um choque produtivo, fez exatamente o contrário. Chamou economistas liberais que terminaram impondo a resposta mais drástica possível: a paridade entre a moeda argentina e o dólar.

Uma solução mágica contra a inflação. A Argentina renunciava a ter uma política cambial, em troca do controle da inflação. Os argentinos passavam a ter um poder aquisitivo alto, dentro mesmo do país podiam comprar em prazos longos sem juros. Quando depositavam dinheiro no banco, consideravam que tinham o correspondente em dólares.

Era uma bomba de tempo, que mais cedo ou mais tarde explodiria. A divida pública acumulada era gigantesca. Carlos Menem foi derrotado, mas seu sucessor, o radical Fernando de la Rua, manteve a paridade e a bomba acabou explodindo no colo dele. A pressão desatou quando ele decretou o fim da paridade – e ele acabaria renunciando.

Da noite para o dia os depósitos dos argentinos nos bancos ficaram reduzidos a um quarto. Com o fim da paridade, a cotação passou de 1 dólar a 1 peso, para 1 a 4. Foi a maior crise da história da Argentina, com um empobrecimento radical de amplos setores populares e de classe média. Surgiram vários movimentos e protestos, o mais conhecido deles – o dos piqueteiros – consistia em bloquear as estradas e impedir a circulação da produção, como forma de se fazerem ouvir em sua principal reivindicação: a criação de empregos.

Em uma única semana se sucederam vários presidentes, até que nas eleições Carlos Menem, prometia dolarizar definitivamente a Argentina. Ele foi vencido no primeiro turno, diante das alianças em torno do segundo colocado, Néstor Kirchner – um até ali desconhecido governador do interior.

Os piqueteiros não participaram do processo eleitoral, propondo a orientação“que se vayan todos”. Não acreditavam que algum governo conseguiria sobreviver. Foi um erro. Se tivesse sido Menem o vencedor, teria havido a dolarização na Argentina e a inviabilização de qualquer processo de integração latino-americana.

Como não tentaram disputar hegemonia, esses movimentos deixaram o espaço livre para ser ocupado por Kirchner. Diante da provável derrota no segundo turno, Menem renunciou à disputa e Kirchner foi empossado presidente.

Entre tantas heranças malditas que recebeu, uma foi a imensa dívida, contraída pela ditadura e pelo governo de Menem. Néstor Kirchner conseguiu articular uma complexa renegociação da dívida, pagando bem abaixo do valor de face dos papéis da dívida.

Conseguiu que 93% dos credores aceitassem os termos da renegociação, mas 7% rejeitaram e, dentre eles, 1% comprou papéis restantes por um preço irrisório. Mas esse fundos – com razão chamados de fundos abutres – colocaram em prática o que já haviam feito com outros países, entre eles o Peru: com vínculos estreitos com setores do Judiciário dos Estados Unidos, conseguiram decisão de um juiz pela qual a Argentina teria que priorizar o pagamento dos credores que não haviam aceitado a renegociação.

Esse mesmo juiz bloqueou o pagamento feito pela Argentina aos demais 93%, colocando o país à beira do calote, porque se pagar o 1% prioritariamente, terá que fazer o mesmo com os restantes 6%, mais os montantes da renegociação, o que consumiria metade das já reduzidas reservas do país.

A economia argentina já havia entrado, pela primeira vez, desde o começo do governo dos Kirchner, em recessão. Qualquer que seja o processo de renegociação da decisão do juiz norte-americano, o país vai ter de desembolsar dólares. Certamente aprofundará ainda mais a recessão, afetará a já elevada inflação – mais de 30% –, assim como o preço do dólar.

Essa situação difícil se dá num momento político desfavorável para o governo, em que Cristina Kirchner não pode se candidatar de novo e, com apoio popular baixo, não tem condições, até aqui, de eleger um sucessor que dê continuidade direta às orientações de sua administração. Em agosto haverá eleições internas nos partidos, e em outubro de 2015, eleições presidenciais. Será um período tenso daqui até lá para a Argentina.