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Nicarágua: esquerda crítica não passa pano

Quarto mandato consecutivo? Eleições com candidatos presos? Esposa como vice? Filhos dirigindo estatais? Aborto proibido em caso de estupro? Tem algo estranho no ar

Redes sociais/Reprodução
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Obcecado pelo poder, Daniel Ortega é hoje uma espécie de sombra que vagueia em torno do grande chapéu de Augusto Cesar Sandino, o grande inspirador das lutas pela soberania do país

O entusiasmo com a revolução sandinista me levou à Nicarágua logo após o triunfo contra a ditadura de Anastácio Somoza. Ali passei cinco anos da minha juventude realizando cursos de formação e comunicação nas organizações populares. Sem medo de errar: apesar dos perigos e incertezas, foram os melhores anos da minha vida. Naquele país nasceu meu primeiro filho.

Também fui representante do Partido dos Trabalhadores junto à Frente Sandinista de Libertação Nacional e fiz parte do coletivo de brasileiros e brasileiras que lá estavam ajudando na reconstrução de uma nação destruída pela guerra civil que matou milhares de pessoas.

Aliás, o PT se destacou desde o início da revolução pela sua enorme capacidade de oferecer solidariedade a um povo sofrido e arrasado materialmente. Organizou e enviou para a Nicarágua uma brigada de profissionais da saúde que enfrentaram as mais difíceis situações de trabalho.

Décadas depois não consigo enxergar a revolução que vivi e senti. Daniel Ortega é uma espécie de sombra que vagueia em torno do grande chapéu de Augusto Cesar Sandino, o grande inspirador das lutas pela soberania do país. Em seu desabrido apego ao poder, é eleito para um quarto mandato consecutivo onde seus principais adversários estão presos e a oposição cada vez mais reprimida. Não, não falo de adversários do campo da direita. Antigos dirigentes e militantes sandinistas passam seus dias atrás das grades, muitas vezes sem acesso a advogados e familiares. Entre as presas, muitas líderes feministas e ativistas de organizações de mulheres.

A pergunta que não quer calar: tem a esquerda o dever de denunciar esta situação análoga ao regime que os sandinistas derrubaram em 1979 ou é hora de passar pano em nome de uma igualmente verdadeira tentativa de derrotar Ortega e o seu governo? Até que ponto a histórica interferência dos Estados Unidos na Nicarágua deve ser uma desculpa para o silêncio diante de constantes violações dos direitos humanos?

A pergunta é incômoda, mas a resposta, pelo menos para mim, não é: onde existir um regime que viole os direitos humanos e a liberdade de expressão, estarei do outro lado da rua. Da mesma forma que defendo que cabe aos próprios nicaraguenses decidir sobre o seu futuro, sem qualquer tipo de ingerência externa. A soberania e a autodeterminação dos povos são valores inegociáveis.

As eleições de 7 de novembro não foram legítimas nem democráticas e muito menos transparentes. Não assistiram a elas observadores internacionais neutros. Governos rechaçaram a sua realização, entre eles alguns de esquerda. A exigência de mostrar o “dedo borrado” foi um ataque ao exercício da cidadania.

A secretaria de Relações Internacionais do PT divulgou nota saudando a realização das eleições na Nicarágua e a vitória de Ortega e sua esposa. Felizmente, a presidenta do partido, Gleisi Hoffmann, desautorizou a nota argumentando que não houve decisão partidária. Ela ainda foi ao ponto: é preciso que governo e oposição respeitem a democracia e que seja respeitado o direito à autodeterminação.

Diante disso, é possível ver que não basta um discurso anti-imperialista e de apoio aos mais pobres para gabaritar o quanto se é de esquerda. Ser esquerda é muito mais que isso; é assumir posições de solidariedade como foi feito nos primeiros tempos da revolução sandinista e também denunciar quando traidores dos mais nobres ideais da humanidade se transformam em algozes de seu próprio povo.

Romper com o passado não é o caso. O passado lá está, registrado na história que ninguém apagará. Jovens revolucionários tiveram coragem e muitos deles deram suas vidas para libertar o povo da opressão somozista. Mas, isso não dá o direito a certos líderes formados na esquerda de envelhecerem as ideias e os sonhos da juventude atual. Que façam isso sozinhos e que paguem pelas consequências de suas vaidades anacrônicas.

Artigo publicado originalmente na Revista Fórum

*Marco Piva é jornalista e apresentador do programa Brasil Latino na Rádio USP e na Rádio Brasil Atual.

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