Amigo de vítima diz que só ‘quem morre na guerra em São Paulo são os pobres’

'Ainda que o governador, o secretário de segurança e demais autoridades que estão enclausuradas em seus castelos no centro expandido se recusem a admitir, estamos sim vivendo uma guerra. É visível'

O Grajaú tem sido uma das regiões mais afetadas historicamente pela violência, e nas últimas semanas foi palco de vários episódios (Foto: Grizar Júnior/Sigmapress/Folhapress)

O manifesto a seguir foi enviado por Thiago Martins, jornalista e morador do Grajaú, zona sul de São Paulo, e que há dois dias perdeu um amigo vítima dos episódios de violência que têm marcado a cidade.

Esta é uma carta de dor e, principalmente, de indignação.

Conheci o Renato há uns 15 anos. Tínhamos a mesma idade. Estudamos juntos desde o primário em uma escola aqui no Grajaú, que já foi considerada a pior do estado de São Paulo. Rimos, zoamos, discutimos, até fomos expulsos juntos da sala de aula. Terminamos o colegial. As vidas seguiram rumos diferentes, ficamos sem nos ver por um tempo e retomamos contato há quase dois anos. Muita coisa tinha mudado, mas ao mesmo tempo tudo continuou igual, entende? 

Renato curtia samba e cerveja. Quando a gente ia num pagode ou em qualquer outro lugar aqui do Graja, ele era parado por algum conhecido. Ele conhecia muita gente, conversava com todo mundo. O apelido da época de escola, “Cebola”, pegou e todos o chamavam assim. 

Ele trampava fazendo entrega do Sedex. Na última sexta, dia 9 de novembro, antes de ir trabalhar, ele pretendia comprar um tênis numa loja da avenida Belmira Marin. Ia voltar rápido para pegar a marmita preparada pela avó e vazar para o trampo à tarde. No meio do caminho, porém, os planos dele foram interrompidos. 

Eram 10 horas da manhã. Testemunhas dizem que Renato passava em frente ao pronto socorro Maria Antonieta, o único para os 500.000 moradores do distrito do Grajaú (fora as redondezas), quando dois homens em cima de uma moto passaram atirando para acertar um policial que estava no mesmo local. O PM foi atingido, mas sobreviveu. Outros dizem que a própria PM atirou nele. Fato é que o Renato levou um tiro no peito, foi socorrido na hora, mas não resistiu.

A bala que matou meu amigo saiu da arma dos criminosos, mas muita gente apertou o gatilho.

Ainda que o governador, o secretário de segurança e demais autoridades que estão enclausuradas em seus castelos no centro expandido se recusem a admitir, estamos sim vivendo uma guerra. É visível que o tal um acordo selado em 2006, que garantiu alguns anos de “paz” às periferias, foi quebrado. O acerto de contas acontece nas ruas, todos estamos vendo. De um lado, os bandidos executam covardemente os PMs, que revidam atirando em quem encontram pela frente.

Não vou repetir aqui o que os Datenas da vida dizem, que bandido assassino merece pena de morte. Assim como não vou repetir o que alguns ativistas falam, que a polícia é cruel e mata sem dó. Cada um está de um lado, todos têm culpa, mas tanto um quanto o outro é vítima do abandono. 

Não são os amigos ou familiares do governador ou da presidenta que estão morrendo; nem do secretário ou dos comandantes da polícia; e nem dos chefões do crime organizado. Quem morre nessa guerra são os pobres – seja o soldado da PM, que vive na miséria; seja o bandido, que entrou no crime fugindo da miséria. E, na linha de fogo, estamos eu, você, o Renato. 

A violência tem mão dupla e é consequência do descaso. Não temos escolas, saúde, emprego perto de casa, transporte digno nem opções de lazer. Acha mesmo que ter a Rota nas ruas vai resolver o problema? Isso vai apenas intensificar os conflitos. 

Como cidadãos, também temos culpa disso. Não enxergamos – ou não queremos enxergar – o que está acontecendo ao nosso redor. Concordamos com especialistas em segurança e jornalistas que nunca colocaram o pé na favela quando eles botam caras muito parecidas com as nossas na TV e julgam antes da justiça. Ou quando falam dos PMs que mataram ou morreram. Você não se reconhece nesses rostos? Eles são iguais aos nossos. E por sermos iguais, também nos tornamos alvo e entramos para as estatísticas. Isso é genocídio do povo pobre das periferias.

Não dá pra depender das autoridades públicas, muito menos da imprensa. Segundo notícia publicada no R7, que utilizou informações da polícia, o Renato foi assassinado enquanto tentava roubar uma motocicleta. O mesmo saiu no Estadão. Quando eu cheguei ao pronto socorro, vi os abutres da Record gravando uma passagem ali. Permaneceram dez minutos no local, não falaram com ninguém e foram embora. Fica a versão deles.

Por tudo que aconteceu, sinto uma dor que não cabe em mim e que me faz querer gritar. E isso só aumenta quando vejo esse tipo de coisa.

Como jornalista e morador de um bairro periférico, sei bem que tem muita coisa boa acontecendo na quebrada. Há mais de 9.000 coletivos culturais em ação, entre saraus, shows, peças de teatro, espetáculos de dança, rodas de samba, entre outras manifestações que envolvem milhares de pessoas. Mas não interessa à grande mídia dar destaque a isso. 

Como amigo do Renato, minha responsabilidade aumenta ainda mais. Por isso, escrevi esse texto, que é a única arma que tenho para lutar. E vou continuar escrevendo, não só para falar disso mas para destacar as batalhas travadas por outros moradores das quebradas para transformar nossa realidade.

Como cidadãos no meio do fogo cruzado, podemos optar entre nos recolher em nossas casas com nossa indignação; ou entrar nessa guerra com as armas que temos. 

Somos 8,5 milhões de pessoas nas periferias de São Paulo – dois terços da população da cidade. Devemos continuar nos indignando com o que está acontecendo, mas fazer algo além de lamentar. 

De forma independente, estou juntando informações sobre resistências pacíficas (como as ações dos coletivo culturais) que estão acontecendo nas periferias. Você pode curtir esse texto, comentar e compartilhar. Mais do que isso, pode contribuir com informações. De que forma você, seus amigos, parentes e vizinhos estão resistindo a essa guerra? Vamos ocupar todos os espaços e mostrar quem é que manda nessa porra!

Que o Renato e as demais vítimas dessa guerra descansem em paz. E que a gente, enquanto estiver por aqui, nunca descanse até que isso mude!

Thiago Borges, 25 anos, jornalista, morador do Grajaú e amigo do Renato ([email protected]