Realidade Catastrófica

Não olhe para cima, olhe para o ser humano

O fictício asteroide funcionou no filme da Netflix. Na vida real, há fundadas preocupações com as ameaças decorrentes da ação humana

Jeanne Martins
Jeanne Martins
A ação humana é preocupação central das discussões sobre mudanças climáticas e eventos extremos, sem precedentes e com impactos devastadores

O filme Não Olhe Para Cima teria custado 75 milhões de dólares, envolvendo um elenco com cinco vencedores do Oscar. A crítica rotulou o filme como satírico, cômico, trágico e até ficção científica. A sinopse: “Dois astrônomos descobrem um cometa mortal vindo em direção à Terra e partem em um tour midiático para alertar a humanidade. Só que ninguém parece dar muita bola”.

O formato usado pelo diretor Adam McKay pareceu-me excessivamente longo, enfadonho e barulhento, com enredo semelhante ao de desenhos animados da década de 1980 em que um super-herói tenta salvar a Terra de alguma ameaça espacial. O desencanto com o roteiro e com a exposição caricata de duas musas do cinema deve ser minoritário, já que o filme encabeça a relação dos mais populares no serviço de streaming no Brasil. Agrada-me mais a Cate Blanchett de Conspiração e Poder, que aborda o jornalismo e o jogo de interesses.

O ator Leonardo DiCaprio esclareceu que o filme seria “uma alegoria sobre as mudanças climáticas”. Seu personagem representaria cientistas climáticos “que tentam falar sobre a urgência do assunto, mas são relegados às últimas páginas dos jornais”.

Dito isso, considerando a profusão de memes e crônicas relacionando atores com personagens da vida real: negacionistas, deslumbrados, alucinados, desonestos, oportunistas, predadores, farsantes, perversos, irresponsáveis, toscos, cruéis e panfletários, identifico problemas na trama que podem comprometer a compreensão acerca das reais ameaças ao planeta e à vida humana na Terra.


Não olhe para cima, Diário, mas fizeram um filme sobre mim na Netifliques


É comum que um filme de catástrofe escale personagem que alerta, implora por atenção e é ignorado. Se pretendia destacar o papel dos cientistas climáticos, talvez um protagonista menos deslumbrado e caricato tivesse contribuído para a causa. Além disso, há pelo menos dois problemas na origem da fictícia ameaça ambiental.

Primeiro: com exceção da ficção e das alucinações periódicas de seitas e malucos, não há notícias de alarmes científicos sérios quanto a ameaças climáticas externas, que subitamente aniquilariam a vida na Terra. Ao contrário, há fundadas preocupações com as ameaças decorrentes da ação humana.

A preocupação ambiental levou o Conselho de Direitos Humanos da ONU a reconhecer, em outubro de 2021, que o meio ambiente limpo, saudável e sustentável é um direito humano. A decisão é considerada um passo importante para a construção de um planeta mais saudável e seguro.

Não se imaginavam limites à exploração do meio ambiente, tido como fonte inesgotável de recursos, até a década de 1960. Coube à pacata e ponderada bióloga marinha Rachel Carson o papel de precursora da consciência ambiental moderna. Seu livro A Primavera Silenciosa, de 1962, despertou a preocupação para os danos ambientais causados por pesticidas sintéticos. Carson foi atacada e desqualificada pela poderosa indústria química, sendo vítima de uma campanha midiática de difamação. Há um bom documentário da NetFlix sobre Rachel Carson: American Experience.


Um 2022 ambiental, porque o planeta não nos dará uma segunda chance


A questão ambiental só entrou na pauta dos líderes mundiais em 1972. Está completando 50 anos a Declaração de Estocolmo, considerada um Manifesto Ambiental da ONU. Contém 19 princípios e registra a preocupação com a ignorância e a indiferença das consequências ambientais das ações humanas:

“Através da ignorância ou da indiferença podemos causar danos maciços e irreversíveis ao meio ambiente, do qual nossa vida e bem-estar dependem; instigando a difusão do conhecimento e de ações mais sábias como roteiro para a conquista de uma vida melhor, agora e no futuro, com um meio ambiente em sintonia com as necessidades e esperanças humanas.”

A partir daí, vieram muitos encontros, documentos e normas internacionais, tais como: a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1983; o Relatório Nosso Futuro Comum, de 1987, com o conceito de desenvolvimento sustentável – incorporado à nossa Constituição de 1988; a Conferência sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92, que adotou a “Agenda 21”, para afastar o mundo do modelo de crescimento econômico, visto como insustentável; a Rio+10, em 2002; a Rio+20, em 2012; e a Cúpula do Desenvolvimento Sustentável de 2015, em que os países definiram os novos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – Agenda 2030.

A ação humana é a preocupação central das discussões, em relação inversa ao mote do filme. O homem ataca o meio ambiente e, na sequência, sofre as consequências do desequilíbrio ambiental. O encontro mundial mais recente COP26, na Escócia, em 2021, foi motivado pelo preocupante Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), que retrata eventos climáticos extremos, sem precedentes e com impactos devastadores.


COP26 representa o roteiro de um fracasso anunciado – Por Liszt Vieira


O segundo problema no enredo, caso de fato pretenda retratar uma ameaça ambiental, está na ocorrência súbita da catástrofe, simultaneamente para todo o planeta. A tragédia ambiental expressa-se de forma silenciosa e gradual, com imagens de esporádicos eventos impactantes, localizados.

O Brasil vem sofrendo reiteradamente com eventos pontuais dessa natureza: incêndios; desmatamento; tempestades de areia, envenenamentos; crise hídrica; enchentes e deslizamentos; secas; e rompimentos de barragens. Também há eventos trágicos silenciosos, na forma de moléstias crônicas, diluídos e invisibilizados pela subnotificação, pela ignorância e pela ausência de imagens chocantes, como se dá com as vítimas de acidentes de trabalho e os contaminados por venenos de uso agrícola, na condição de trabalhadores, habitantes de fronteiras agrícolas ou consumidores de produtos com resíduos. São situações em que a vida na Terra acaba para as vítimas, em tragédias particulares, anônimas e instantâneas, ou converte-se em agonizante limitação incapacitante suportada pela Previdência.

Em alguns casos, mesmo a ameaça que vem de cima está imediatamente ligada à ação humana, como se dá na pulverização aérea. Nesse tópico, registre-se a importância da Lei Zé Maria do Tomé — Lei nº 16.820/2019 —, proibindo o despejo de veneno por aviões no Ceará. A lei está sendo questionada no STF (ADI 6.137), dando à nossa Corte constitucional mais uma oportunidade de concretizar o compromisso brasileiro com os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.

Interesses econômicos

Capitulando a interesses econômicos imediatos e ignorando evidências epidemiológicas, a sociedade vem permitindo que a indústria química obtenha autorização para um volume colossal de veneno. No último dia de 2021 foram liberados mais 51 biocidas (são 1.552 agrotóxicos nos últimos três anos). Não se observa presteza semelhante na revisão que deveria levar à proibição de produtos banidos do mundo civilizado. Num dos casos, foi autorizado o herbicida Dicamba, contrariando inclusive o agronegócio que apontou que o produto foi proibido pela Justiça dos EUA, por ser muito perigoso para o meio ambiente.

No mesmo sentido, de forma açodada, o governo de Jair Bolsonaro pôs em revisão a NR36, norma que dispõe sobre o meio ambiente do trabalho seguro nas atividades de frigoríficos. O setor se destaca entre os que mais geram acidentes de trabalho. O Ministério do Trabalho reconhece que ocorreram 23.320 mil acidentes em 2019 (90 acidentes por dia). São 85.123 eventos em quatro anos. Além dos sequelados sobreviventes, a vida na Terra acabou para 64 trabalhadores que morreram em frigoríficos no período. Os dados reais da ação humana são bem mais graves, pois o Governo admite que a subnotificação no setor é superior a 320%.

Numa leitura obtusa, que considera as normas de proteção como meros entraves ao desenvolvimento, setores econômicos pressionam para flexibilizar a legislação ambiental. Ignoram ou são indiferentes às consequências do desmonte do sistema de preservação, como no caso da Lei 14.285, aprovada em 2021, que facilita a ocupação das margens de rios nas áreas urbanas: prenúncio de novas tragédias para as populações ribeirinhas.

Questão de escolhas

Outra ameaça muito grave tramita no Senado, estimulando comportamentos predatórios. O Projeto de Lei 2.159/2021, já aprovado pela Câmara dos Deputados. A proposta contempla inclusive a possibilidade de obtenção de licença ambiental por mera declaração do empreendedor, eliminando ou  fragilizando a proteção ao meio ambiente. Espera-se que o Senado, na função de Casa revisora, impeça que o conjunto de dispositivos lesivos à saúde humana e ao meio ambiente prospere. Desperta preocupação semelhante a proposta de alteração do Código de Mineração, que não deveria ignorar o aprendizado das tragédias que deram cabo a centenas de vidas em Mariana e Brumadinho.

Há vários ataques ao meio ambiente sendo planejados e praticados. A questão requer escolhas, da sociedade e das instituições, entre os interesses envolvidos e as consequências decorrentes. Essa ponderação está numa das frases intrigantes do filme de McKay, “A gente sempre tem escolhas. Às vezes só precisa optar por uma boa”.

O fictício asteroide espacial funcionou na fábula. Na vida real, há sinais em abundância de que o ser humano é o algoz e a vítima, mas também pode ser a solução. As escolhas são humanas; as consequências, também. Portanto, olho no ser humano e nas instituições humanas!


Leomar Daroncho é procurador do Trabalho e membro do Coletivo Transforma MP.

Artigos desta seção não necessariamente expressam opinião da RBA