Primavera árabe: passos e impasses (5)

Carros queimados em Damasco, na Síria. País dividido por diferentes rebeldias, em escalada constante de violência (© Reuters/Stringer) Uma das caracterísiticas desse “Primavera Árabe” é o deslocamento rápido dos epicentros […]

Carros queimados em Damasco, na Síria. País dividido por diferentes rebeldias, em escalada constante de violência (© Reuters/Stringer)

Uma das caracterísiticas desse “Primavera Árabe” é o deslocamento rápido dos epicentros de suas manifestações. Esses deslocamentos se dão entre países. Tudo começou na Tunísia. Dali migrou para o Egito. Houve irrupções na Jordânia, no Iêmen, em Bahrain. Daí houve uma erupção na Líbia. Os Sauditas se movimentaram, interferiram no Bahrain, no Iêmen.

Quando a Síria entrou no redemoinho, a Turquia também foi puxada para dentro. O Líbano não escapou da tempestade; nem Israel, onde reina uma preocupação que beira o pânico com essa “Primavera” que o governo de Netanyahu não reconhece como tal.

Agora a bola (bomba?) da vez é a Síria. Mas nada impede que a crise Síria se prolongue enquanto novas frentes venham a se abrir: por exemplo, na Jordânia ou talvez até no Marrocos. Ou ainda no Líbano. No bastidor – mas por si só um epicentro de terremoto – está o Irã. E ao redor, bailam Estados Unidos, outras potências do Ocidente, Rússia e China.

Na Síria temos visto uma das situações mais voláteis desse conjunto explosivo. O epicentro da crise Síria se desloca velozmente dentro do país, prenunciando uma das possibilidades de desenvolvimento: a fragmentação interna, podendo até ir a uma dispersão territorial, pelo menos momentâneamente.

Ontem (terça, 24), o epicentro da crise síria permanecia nos arredores e na periferia de Damasco, com ferozes combates entre rebeldes e tropas do governo. Depois houve  uma rápida incursão ao plano internacional – quando o governo sírio anunciou que usaria armas químicas (inclusive o temido gás mostarda, que ataca o sistema nervoso central) contra invasores estrangeiros e o norte-americano respondeu insistindo na queda da Bashar al-Assad. Hoje, quarta-feira (25), o epicentro se deslocou para a cidade estratégica de Aleppo, importante centro comercial, para onde estão convergindo as tropas do governo, depois  de terem pelo menos neutralizado o avanço dos rebeldes em Damasco.

Uma das razões desse rápido deslocamento de  epicentros está na natureza das rebeldias, mobilizando grupos completamente díspares e até conflitantes entre si, unidos apenas pelo afã de derrubar o governo instalado. Não há, como havia no tempo da Guerra do Vietnã, um denominador comum ideológico que forneça uma plataforma para a construção de uma unidade.

Lá esse denominador era o comunismo, com a ideologia marxista por detrás. Hoje, o que pode haver de comum, para ficar num único exemplo, entre o Exército Livre da Síria, formado por dissidentes do Exército regular, e o dispersivo Conselho Nacional da Síria, cujos pontos de união sào frágeis diante da montanha das divergências? E há mais: a rebeldia inclui grupos religiosos, sendo o mais proeminente formado pelas correntes islâmicas (com grupos desde a Irmandade Muçulmana até grupos terroristas como o que disputa com o Exército Livre a autoria do atentando que praticamente decapitou o círculo de segurança em torno de Assad).

Mas há, por exemplo,  grupos cristãos e drusos (uma corrente muçulmana específica nem sempre aceita como tal pelas outras correntes), além de etnias, como os curdos, concentrados na Síria e na Turquia. Em tempo: uma das razões da ingerência turca é a preocupação de que o levante sírio estimule a reivindicação dos curdos por um território específico, o que traria mais problemas internos para o governo de Ancara.

Esse quadro absolutamente fragmentário põe na mesa das possibilidades uma balcanização interna da Síria, pois diferentes grupos controlam ou são mais fortes em diferentes regiões, o que faz prenunciar uma possível guerra civil prolongada, mesmo depois da eventual queda do regime de Assad. E se este regime de fato cair – como prevê ou deseja, quase em uníssono, a mídia do Ocidente – ainda haverá o grupo dos remanescentes do Exército regular, aliado aos Alawitas, de onde provém a dinastia e o clã de Assad.

Outro fator de imponderabilidade é o da inexistência de uma liderança clara e insofismável para esse conjunto disparatado de rebeldias. Até agora o único candidato a tal é o general  Manaf Tlass, hoje na França, mas por ora apenas um alto oficial exilado, com ascendência sobre os dissidentes do Exército – e só.

A emergência “súbita” dessa “confusão” aponta também para outros importantes elementos de análise:

1. O caráter repressivo do regime de Bashar al-Assad, capaz de herdar/renovar  um regime hegemônico durante décadas na Síria, mas incapaz, hoje se vê, de estabelecer um dialogo mínimo com as forças sociais que apenas continha e reprimia.

2. A cegueira endêmica do Ocidente (governos e mídia), acostumada a ver nos países árabes, de um modo geral, apenas uma massa amorfa e incongruente de povos incapazes para a democracia ou até mesmo a rebeldia (ainda que desorganizada), contida por governos repressores, corruptos – e convenientes, é bom não esquecer.