paralelos

O Brasil de hoje e o golpe nazista de 1933: semelhanças e diferenças

Muito se tem escrito, contra e a favor, sobre semelhanças e diferenças entre o golpe nazista nos anos 1930 e o que hoje está em curso no Brasil. O tema merece um exercício de História comparada

arte: leandro siman / rba

Cunha e Hitler: diferentes na importância histórica, semelhantes no método, ambos golpistas

“Nem sempre o que é, parece.
Mas o que parece, seguramente é”
(ditado brasileiro)

Começo por alguns personagens principais. Ninguém de bom senso vai comparar o trágico e sinistro Adolf Hitler com o tacanho e tragicômico Michel Temer. Nem um, nem outro merecem tanto. Este é “do lar” e, bem… o primeiro também, “do lar”, abstêmio, vegetariano, fiel, pelo que se sabe, mas os penteados são completamente diferentes. Além disso, Hitler ficou no poder durante 12 anos, de 1933 a 1945. Temer não ficará tanto. No Inferno de Dante, Hitler estaria na boca de Lúcifer, mascado com os grandes traidores da história. Onde estará Temer? Provavelmente na porta do Inferno. Nem lá será admitido. Na porta, sem direito nem a meia-entrada, estão os que carecem até mesmo de um forte caráter pecador. Para alegria dos pós-modernos, estão no não-lugar universal e eterno.

Também ninguém vai comparar o grotesco Cunha ao também grotesco Göring, que foi quem presidiu a sessão do Reichstag que começou o golpe de Estado nazista em 23 de março de 1933. Se estivessem num romance de Dostoyevski, ambos seriam qualificados como psicopatas. Mas não esteve um nem está o outro. Vamos aguardar para ver como a história qualificará o mais recente deles.

Agora, se olharmos os métodos, como se parecem!

Em primeiro lugar, Hitler deu aquilo que a revista uma alemã qualificou, em relação ao Brasil, um kalter Putsch, um “golpe frio”, ou “branco”, na nossa tradição. Foi um golpe “legal”, através de uma votação no Bundestag, o Parlamento, depois confirmado pelo Bundesrat, que equivaleria ao nosso Senado (como deve acontecer), assinado pelo presidente von Hindenburg, e largamente deixado correr ou apoiado pelo Judiciário.

O golpe ganhou o nome histórico de Ermächtigungsgesetz, que poderia ser traduzido por “Lei de Empoderamento”. Era muito breve, como o nosso Ato Institucional nº 5 (o AI-5, de 1968): tinha um preâmbulo de algumas linhas e cinco artigos. Em essência, dizia que o Gabinete Executivo – presidido por Hitler – tinha poderes para decretar leis sem aprová-las no Parlamento, e que essas leis estariam acima da Constituição. Dizia que a exceção se referia ao Bundestag e ao Bundesrat, coisa que, evidentemente, foi desrespeitada depois. Ou seja, como hoje no Brasil, rasgava-se a Constituição “legalmente”, e abria-se o período de exceção, diante de uma pequena burguesia (hoje diríamos alta classe média) temerosa pela ascensão dos de baixo. Mas tanto lá como hoje, nessa classe média isso não era unânime. Por isso a repressão que se seguiu foi generalizada. E hoje, não será?

Mas houve também o processo de votação. Como o nosso presidente da Câmara, Göring se dedicou a criar regras próprias para a votação. Depois do incêndio do Reichstag, no final de fevereiro de 1933, Hitler desejou que na nova votação que haveria no começo de março ele tivesse assegurada uma maioria absoluta no Bundestag. Não aconteceu. O Partido Nacional Socialista precisava ainda do apoio de partidos de coalizão (basicamente o Partido do Centro, católico – parecido com os evangélicos de hoje – e o Partido Nacional do Povo Alemão, coligado com os nazistas). Por isto os nazis decidiram adotar o caminho da Lei do Empoderamento, para prescindirem desse apoio futuramente. E os outros morderam a isca.

Mas houve mais. A Constituição alemã previa que para uma votação dessas, que a modificava, era necessária a presença de dois terços dos deputados, ou seja, 432 dos 584 membros. Para vencer esta dificuldade, Göring inventou uma nova conta. Como os comunistas tinham sido acusados pelo recente incêndio do prédio do Reichstag (o Parlamento se reunia num teatro, a Casa da Ópera Kroll), os deputados do KDP (o Partido Comunista Alemão) tinham sido presos, banidos, ou estavam foragidos. Assim, Göring simplesmente descontou os 81 que eles eram da soma geral, e o quorum ficou reduzido a 378. Boa matemática, não?

Além disto, Göring abriu as portas do Parlamento aos nazisturmabtellung, os SA, Camisas-Pardas (que depois seriam sacrificados para ratificar o poder dos SS). Hoje, no Brasil, não há SA, mas há as tratativas entre a presidência da Câmara e a Rede Globo, com votação no domingo, mudança em horários de jogos dos campeonatos… enfim, cada momento tem a SA que pode.

O processo de votação foi uma farsa. Estaremos falando de 1933 ou de 2016? Tanto faz. Aquele não foi transmitido pela TV, porque TV não havia, pelo menos na escala de hoje. O de hoje foi, para vergonha dos deputados perante o mundo. Vários deputados do SPD (o Partido Social-Democrata alemão) tinham sido presos ou haviam fugido para o exterior. Mas o inventivo Göring criou uma nova cláusula: deputados que não comparecessem, mas que não tivessem apresentado uma justificativa por escrito, deviam ser contados como presentes, para garantir o quórum. (Lembram da alegação de um deputado pró-impeachment de que os deputados ausentes teriam de apresentar atestado médico?)

Na sessão, apenas o líder do que restava do SPD, Otto Wels, que terminaria morrendo exilado na França antes da ocupação, falou contra a nova Lei. Os outros discursos foram ridículos (alguma coincidência será mera semelhança?). Bem, ninguém invocou a mãezinha ou o vizinho, mas saíram coisas como a pátria e a ordem. Resultado: 444 a favor da nova lei, 94 contra, todos estes do SPD.

Um detalhe interessante: Hitler negociara com Ludwig Kaas, o líder católico, que respeitaria o direito da Igreja e os funcionários católicos nos cargos de Estado, além das escolas. No dia seguinte ao da votação, que foi logo aprovada no Bundesrat e assinada por Hindenburg, Ludwig Kaas foi despachado para o Vaticano para explicar a nova situação ao então cardeal Pacelli, futuro Papa Pio XII, de triste memória (alguma semelhança com a viagem do “ex-companheiro” Mateus, nome de guerra do hoje senador Aloysio Nunes Ferreira, despachado aos States logo depois da votação na Câmara?) Ele cumpriu a missão religiosamente, como o Mateus. Porém, Hitler lhe prometera (a Kaas) uma carta com as garantias. Ela nunca foi entregue.

Satisfeitas e satisfeitos? É, mas tem mais…

Porque ainda resta o triste papel do Judiciário. Em primeiro lugar, juízes alemães legalizaram a perseguição aos comunistas porque eram “traidores” incendiários do Reichstag. Depois, fizeram vista grossa para as demais perseguições que vieram. Ou apoiaram. Quem inaugurou a queima de livros em 10 de maio de 1933, na hoje Bebelplatz, foi o diretor da Faculdade de Direito, ao lado, trazendo uma braçada de livros “degenerados” da sua biblioteca.

Hitler acusou um comunista holandês, Marinus Van der Lubbe, e mais quatro outros militantes búlgaros pelo incêndio, que ocorreu em fevereiro de 1933, alguns dias antes da eleição de março. Eles foram levados a julgamento no segundo semestre de 1933. Lubbe foi réu confesso – sabe-se lá como sua confissão foi obtida, mas pode-se julgar pela declaração em juízo de um dos outros acusados, Georgi Dimitrov, de que passara sete meses acorrentado em sua cela, dia e noite. Naquela época não havia delação premiada… Os outros quatro foram absolvidos por falta de provas, mas Lubbe foi condenado à morte e executado no começo de 1934.

Farsa? Sim, mas o pior vem depois.

Em 1967, um juiz da Alemanha Ocidental, na reabertura do processo promovida pelo irmão do condenado, Jan, “comutou” a pena de Van Der Lubbe de condenação à morte para oito anos de prisão (!), quando o réu já estava, digamos, no outro mundo. Em 1980, novo julgamento anulou a decisão de 1933 e de 1967. Mas em 1983 nova decisão anulou a de 1980, a pedido do… Ministério Público (!). O caso só foi resolvido definitivamente em 6 de dezembro de 2007 (!), 71 anos depois da decisão original, quando o equivalente ao nosso promotor-geral da República proclamou “o perdão” de Van Der Lubbe, com base em uma lei de 1998 que declarara todos os julgamentos da época do nazismo juridicamente nulos.

Até hoje as alegações de que o incêndio foi provocado pelos próprios nazistas para começar sua série interminável de desmandos nunca foi oficialmente investigada. É um bom exemplo para quem acha que o caso das omissões e vagarosidade do Judiciário brasileiro é algo único na história.

Depois deste exercício de história comparada, que as leitoras e os leitores tirem suas próprias conclusões.