A síndrome da Arca de Noé

O assassinato, em um tribunal alemão, da farmacêutica egípcia Marwah el-Sherbini traz questões para se pensar o preconceito no Brasil

Marwah el-Sherbini e o marido foram alvo de facadas em pleno tribunal alemão (Foto: Reprodução The Guardian)

No dia 1º de julho a farmacêutica egípcia Marwah el-Sherbini, de 32 anos, foi morta com 18 facadas pelo russo de ascendência alemã Alex W. Os dois estavam na sala de um tribunal de Dresden, na Alemanha. O crime ocorreu diante do filho da farmacêutica, de 3 anos e do marido também egípcio, Elvi Ali Okaz, que tentou socorrê-la, mas foi baleado por um segurança do tribunal que, entrando na sala, pensou ser ele o agressor. Também ferido a facadas, Elvi ainda está hospitalizado em estado grave. Ela estava grávida de pouco tempo, e residia com o marido na Alemanha havia alguns meses, para que ele, engenheiro genético, fizesse seu doutorado.

A história do crime começou em 2008, quando Marwah dirigiu-se a Alex num parque da cidade, pedindo-lhe que desse espaço para seu filho num brinquedo para crianças. Alex respondeu-lhe com insultos, chamando-a de “vagabunda”, “cadela”, “terrorista”, “p… islâmica” e outros palavrões, disse-lhe que tinha votado no partido NPD, de extrema direita, porque “eles iam acabar com a raça dela” etc. Marwah achou que aquilo não podia ficar assim, e levou o caso à justiça.

Alex foi condenado a pagar uma multa de € 780, mas apelou da sentença, com o argumento de que “gente como ela não era um ser humano” e que, portanto, ele não poderia tê-la “insultado”. No dia 1o. foi o julgamento da apelação, e a jovem estava no banco das testemunhas recordando o episódio do parque quando ele sacou a arma e atingiu-a.  O crime provocou comoção e a reações iradas no Egito, onde o enterro de Marwah, que fora campeã nacional de handebol, foi acompanhado por milhares de pessoas. Na Alemanha e na Europa o caso levantou uma viva discussão sobre suas causas e as sequelas que vai deixar.

Vários questionamentos se impuseram sobre a tragédia. O primeiro, mais óbvio, foi o de por que, dada a natureza dos acontecimentos, não houve medidas severas de segurança no tribunal. Como o assassino conseguiu entrar num tribunal – que deve ou deveria ter um detector de metais – com uma faca que testemunhas descreveram como “grande”?

O outro questionamento foca a atitude do assassino e a do segurança, que se enganou de agressor. É claro que essas atitudes são de natureza muito diferente, e não estou querendo comparar o guarda ao assassino. Mas há um link sutil entre a grosseria vulgar, arrogante e depois assassina de Alex e a afobação do vigilante que atirou primeiro e pensou depois. É o que estou chamando aqui de a síndrome da Arca de Noé.

História

Alex era um desempregado; a extrema-direita alemã e europeia vem capitalizando cada vez mais o ressentimento que grassa entre os mais pobres contra os imigrantes ou os simplesmente estrangeiros, sobretudo, os de origem muçulmana. Faz parte desse sentimento a sensação de que “nós europeus” estamos em meio à tempestade na nossa Arca de Noé, onde não deve haver espaço para penetras. Há, inclusive, muitos imigrantes que chegaram há mais tempos que passam a assumir esse sentimento. “Nós conseguimos entrar na Arca da salvação, e agora não queremos que ninguém mais entre”. Esse tipo de xenofobia é o caldo político de cultura, aferventado pela extrema-direita, que descortina o horizonte tanto para os insultos de Alex contra a farmacêutica quanto seu crime hediondo.

Mas é mais trágico ainda constatar que uma reação – não igual, é evidente – mas análoga, alimentou a atitude infeliz do guarda, que atirou no homem errado. Diante dos dois homens que se confrontavam na cena horrível, o guarda afobado não teve dúvida: pensou que o agressor devia ter um rosto “muçulmano”, “árabe”, “islâmico”, seja que palavra for, dentre as do repertório com que nossos ouvidos são cotidianamente malhados. Diante dessa barbárie e dessa tragédia, é um pequeno mas significativo consolo, o fato de que tanto o diretor do Conselho Central Muçulmano, quanto o do Conselho Central Judaico, ao visitarem o infeliz marido no hospital, usaram a mesma expressão para contradizer quem não queira reconhecer o preconceito racial, cultural, religioso e social por trás de tudo: “o fato fala por si mesmo”.

E nós, no Brasil? Nós nos orgulhamos por vezes de não estarmos tão marcados por síndromes desse tipo. Mas será que não estamos mesmo? Não me refiro só a fatos como o do índio morto em Brasília pelo grupo de jovens que tocaram fogo em suas vestes. Penso na reação que muitos – inclusive na nossa mídia tradicional – tiveram quando, por exemplo, o governo na Bolívia quis renegociar o preço do gás e restabelecer a soberania daquele país sobre suas reservas de petróleo e derivados. Houve quem quisesse que o Brasil “pusesse a Bolívia de joelhos”, e por trás de alguns comentários podia-se ler a frase escondida: “mas como essa indiada, esse índio que se mete a presidente, podem ser tão ousados? Ah, no bom tempo das ditaduras não era assim…” E outras sandices ditadas pelos preconceitos.

Pois tão grave quanto ter preconceitos é fingir que eles não existem.