A realidade do desastre e a retórica da salvação

Há uma teoria dos governos (Giovanne Arrighi era um dos que apontava nessa direção) que diz que o seu papel é semear o caos e depois administrá-lo. No atual momento, […]

Há uma teoria dos governos (Giovanne Arrighi era um dos que apontava nessa direção) que diz que o seu papel é semear o caos e depois administrá-lo.

No atual momento, em que uma potência tenta permanecer mono-hegemônica, isso ficou muito evidente. Basta olhar: Iraque, Afeganistão. Agora mais recentemente, vemos a superpotência e suas subsidiárias tentando administrar as crises na Tunísia, no Haiti, na Costa do Marfim, procurando encontrar soluções e fórmulas antes que seus povos as encontrem.

Não são crises menores: no Haiti, trata-se de impedir o espraiamento da presença cubana; na Tunísia, evitar uma soluçào original num país da Liga Árabe que essas mesmas potências ajudaram a manter no aprisco de uma ditadura durante 23 anos; na Costa do Marfim trata-se literalmente de garantir o chocolate das crianças (é o maior país exportador de cacau do mundo) e os lucros que daí advém.

Entretanto, o esforço que a justificativa dessas iniciativas impõe não é pequeno.

Dias atrás assisti um programa de debate muito procurado aqui na Alemanha, o de Anne Will, sobre a presença alemã no Afeganistão, como parte das tropas da Otan lideradas pelos EUA. O campo dividia-se entre dois conhecidos ativistas – um de esquerda e o outro conservador – críticos da presença alemã, e dois entusiastas dessa presença, um jornalista que se quer liberal, da equipe do Spiegel online, e um ministro de Estado – justamente o da Cooperação Econômica e Desenvolvimento.

O esforço encarniçado doos defensores da presença tinha por base uma espécie de aura, ou vocação, missionária: estamos levando “a civilização” a um povo que não a tem. Ou que não a pode conseguir de motu próprio.

É curiosa, essa identificação: a guerra, com o caos que ela traz, é uma cabeça de ponte da “civilização”, e a paz que ela deveria trazer. 

Há uma retórica salvacionista nisso, mas que funciona tanto por inclusão quanto por exclusão. Inclusão: como os talebãs se tornaram um problema, estamos lá para “libertar” o povo de seu poder maligno. Exclusão: omite-se o fato de que a intervenção do Ocidente no Afeganistão (a recente, já não falo dos imperialismos do passado) começou… financiando e armando os talebãs (e de quebra, Osama Bin Laden e sua Al Qaeda) contra a presença soviética. Assim como no Iraque: os EUA financiaram e armaram Saddam Hussein contra o Irã. Depois, como o ditador não se sentiu suficidentemente recompensado pelo serviço, ele tornou-se incômodo e teve de ser derrubado, com as conseqüências que se seguiram.

Ou seja, semeou-se o caos, e depois veio a custosa administração missionária.

Há um desenvolvimento curioso nisso: o feitiço, ou a retórica, voltou-se contra o feiticeiro, ou o retórico.

Deixemos o terceiro mundo e miremos com nosso cursor a “civilizada” Europa. Não só “civilizada”, mas a matriz da “civilização”.

A construção da zona do Euro, do jeito que se deu, semeou o caos. Agora trata-se de aministrar esse caos. Para construir a União Européia e dentro dela a zona do Euro, flexibilizou-se a circulação de capitais. Onde antes, não faz muito, na verdade apenas duas gerações, circulavam exércitos arrasadores, agora circulam financiamentos bancários – de certo modo, não menos arrasadores. Governos fascinados pelos recursos disponíveis tomaram empréstimos fabulosos – muitos governos, não apenas os dos países “mais fracos”. Curiosamente, chamam-se essas dívidas de “soberanas”! É um oxímoro: “dívida soberana”, algo como o “Hércules Quasímodo” com que Euclides da Cunha descrevia o sertanejo. Uma dívida pode ser tudo, menos soberana, exatamente porque ela “obriga” o devedor, ora.

Bancos fascinados pelos créditos, comissões, pro-labores, bonus para seus executivos, etc., emprestaram dinheiros a rodo, sem medir as conseqüências. Ou seja, semeou-se o caos. Na hora do paga, o torniquete apertou do lado dos mais fracos: estes devem pagar, de qualquer jeito. Os mais fortes – os países-sede dos bancos, como Alemanha e França, têm outro status na hora das renegociações das dívidas, que também são altíssimas. Ou seja, de novo, semeou-se o caos, e agora as hegemonias regionais se legitimam ao administrá-lo, com uma retórica salvacionista: trata-se de “salvar o euro”. “Salvar a União Européia”.

Salvar sim. Ninguém de bom juízo pode pensar, nessa altura, que a dissolução da U. E. ou o derretimento do euro seria uma boa coisa. Só quem pensa nisso de fato, aqui na Europa, é a direita, extrema ou cautelosa, sonhando com o império dos velhos nacionalismos deste lado do oceano e deste hemisfério que, ao contrário dos nossos, latino-americanos, são sempre excludentes e xenófobos.

A questão é a de quem vai pagar pelo “salvamento”. Os trabalhadores, em primeiro lugar. Os países mais fracos, em segundo. O salvamento impõe sob a forma de juros mais altos (que Portugal concordou em pagar) ou de obrigações políticas diante do socorro pelo Fundo Europeu de Emergência?FMI  (como no caso da Grécia e da Irlanda) uma brutal transferência de fundos públicos para capitais privados, de investimentos sociais para fundos rentistas. Isso se chama “salvar o euro”, “salvar a União Européia”.

Há outro caminho? De momento, parece que não. Porque não se vislumbra outra hegemonia de governança possível. As redes conservadoras e social-democratas não vislumbram alternativas. Os movimentos de trabalhadores estão fragmentados e a bandeira da solidariedade internacional esfarrapada. Os movimentos de trabalhadores e alternativos assistiram na arquibancada dos outros países a ressistência dos trabalhadores gregos contra o esbulho a que foram submetidos por administrações ineptas e injuções da U. E. e do FMI, para garantir o fluxo de pagamentos para os bancos credores da “dívida soberana” da Grécia (80 % dos 110 bilhões de euros acordados no pacote da ajuda irão direto para o bancos credores, sobretudo os alemães e franceses).

A retórica da salvação parece cobrir inteiramente o horizonte, na sua versão conservadora. Alternativas, como as que se desenham na América Latina, ou são ridicularizadas, como a do “chavismo caudilhesco”, ou tratadas como um “desvio momentâneo”, embora de peso, como a do Brasil, ou solenemente ignoradas, como se não existissem (caso do Uruguai, Argentina., Equador, Paraguai), ou simplesmente alvo de preconceito anti-indígena (caso da Bolívia). Diga-se de passagem, isso não é muito diferente do que faz a nossa direita.

De todo modo, estamos diante de uma nova dimensão da globalização conservadora: a da unificação das retóricas conservadoras, claro que com nuances adequadas a cada caso. Tanto no Afeganistão, como na Grécia ou na Irlanda de joelhos, ou em Portugal já em genuflexão, ou na Alemanha que se mantém de pé graças a sua hegemonia na zona do euro, trata-se de “salvar a civilização”. Mesmo que isso, com freqüência, signifique de fato apenas salvar a própria pele às custas da dos outros, sobretudo dos mais pobres.