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Mais uma “caçada humana”: o caso de Abu Bakr Al-Baghdadi e o “xerife” Trump

Nenhuma simpatia pelo líder do Exército Islâmico e seus propósitos. Mas tampouco merece simpatia o modo desrespeitoso com que o presidente dos EUA relatou sua morte

CC Thierry Ehrmann/Abode of Chaos
CC Thierry Ehrmann/Abode of Chaos
Da guerra híbrida ao assassinato puro e simples, Estados Unidos dão a si mesmos autorização para liquidar qualquer um que vejam como inimigo ou antagonista

No dia 27 de outubro, domingo, foi ofertada ao mundo mais uma “caçada humana” por forças militares norte-americanas: o caso do auto-proclamado “Califa” Abu Bakr Al-Baghdadi, líder do Exército Islâmico, Isis ou Isil. Originalmente, um “califa”, à testa de um “califado”, se apresenta como um sucessor do profeta Maomé, sem a condição de profecia deste, na liderança do mundo muçulmano.

Em 2014, Al-Baghdadi proclamou o território então sob controle do Exército Islâmico na Síria e no Iraque um “califado” e se identificou como seu mandatário, o “califa”. O movimento, além de ser um desafio para seus inimigos “externos”, era também um recado interno ao mundo muçulmano, proclamando o Exército Islâmico como o sucessor correto na linhagem política e religiosa descendente d’O Profeta.

As acusações contra ele eram de monta, indo desde o rapto e as execuções de reféns até a submissão em condição de escravatura de populações inteiras, e também de mulheres. Nenhuma simpatia por ele e seus propósitos, portanto. Porém, nenhuma simpatia tampouco pelo modo “a la faroeste” com que as forças norte-americanas o caçaram até a morte, como já havia ocorrido no caso de Osama Bin Laden, morto no Paquistão.

Desta vez, a perseguição acabou em Bashira, uma cidade antiga na região de Idlib, na Síria, próxima à fronteira com a Turquia.

Tampouco merece simpatia o modo desrespeitoso com que o presidente Trump relatou o feito, ridicularizando o caçado, dizendo que ele estava em pânico e chorava como uma criança. Aliás, no episódio teriam morrido três crianças, quando, segundo a versão dos perseguidores, o perseguido, acuado num túnel sem saída, detonou o colete explosivo que vestia. Na operação morreram outros militantes do Estado Islâmico, incluindo algumas (parece que pelo menos duas) mulheres, que teriam também se suicidado da mesmo forma que seu líder.

O episódio envolveu algumas passagens rocambolescas, como o furto prévio de uma cueca do líder do E. I. para posterior exame de DNA.

Uma série de perguntas pairam em torno do caso. Por que Al-Baghdadi teria se refugiado nesta região, próxima à fronteira turca, vigiada pela Turquia, pela Rússia, e previamente controlada pela Al-Qaïda, com quem o “califa” rompera? Por que a força-tarefa encarregada do assalto partiu do Iraque, e não da Turquia? Como se deu a obtenção de informações sobre seu paradeiro? Os Estados Unidos agradeceram a Turquia, a Rússia, os curdos, pela “cooperação”, sem esclarecer as razões do agradecimento.

Alguns comentaristas ressaltaram que isto seria impossível sem a cooperação vital dos curdos, que permanecem os principais responsáveis, em terra, pela desarticulação do califado pretendido pelo Exército Islâmico, agora praticamente abandonados à própria sorte pela errática política de Trump na região.

O governo norte-americano confirmou ter identificado pelo exame de amostras do DNA colhidas no local, em comparação com as amostras na tal cueca, que o cadáver era de fato do suposto “califa”, mas não mostraram as evidências, nem mesmo fotos do local ou gravações de vídeo.

Fica tudo assim envolto no mistério e na dependência da credibilidade da palavra do presidente dos Estados Unidos, repórter privilegiado do feito.

O fato é que graças à sua política confusa e das críticas recebidas pelo abandono dos curdos diante das forças turcas, que ressaltavam que este movimento de enfraquecimento dos curdos favorecia o Estado Islâmico, os Estados Unidos precisavam de um “feito” deste tipo. Sobretudo por que Al-Baghdadi fora aprisionado pelas forças norte-americanas no Iraque em fevereiro de 2004, tendo sido solto em dezembro do mesmo ano.

A “caçada”, com seu “final feliz”, ajuda a reafirmar o papel auto-atribuído de “xerife do mundo” por parte do governo de Washington, nesta nova estratégia que admite toda e qualquer forma de luta contra quem os Estados Unidos vejam como inimigo ou adversário, da guerra híbrida ao assassinato puro e simples.