vozes se erguem

Paris e a era das intolerâncias

Os refugiados e as políticas sociais que demandam são oportunidade de as metrópoles darem fim à segregação de suas periferias. É com o ódio anti-islâmico injetado pelas direitas que o terrorismo seduz a juventude

© anixneuseis

Passeata em Paris pede fim do ódio ao islamismo: ‘Minha religião é minha escolha e direito. Vivermos juntos é o caminho’

Berlim – Não foi só Paris: há vozes que se erguem – e com razão – lembrando que o impacto midiático da carnificina terrorista em Paris nos faz momentaneamente esquecer outras. De fato, para ficarmos apenas nos últimos acontecimentos, há uma série de outros semelhantes, em atos perpetrados pelas atividades terroristas: Ankara, o avião russo no Sinai, o duplo ataque suicida em Beirute, dois na Nigéria, em Yola e Kano (estes cometidos, aparentemente pelo Boko Haram). Somando os mortos desses ataques todos a conta vai a 545. E o número de feridos passa de mil. Também não esqueçamos dos crimes cometidos em nome da segurança do Estado, mas disso falaremos em outra ocasião. Temos neste artigo um foco preciso.

Se Eric Hobsbawm, o historiador britânico nascido no Egito, autor da série das “Eras” (das Revoluções, do Capital, dos Impérios e dos Extremos), fosse vivo, talvez escrevesse um livro para caracterizar o fim do século 20 e este começo do século 21: A Era das Intolerâncias.

Quando, diante do capitalismo triunfante na Guerra Fria, tentou se proclamar “o fim da história” e também “o fim das grandes narrativas”, mal imaginaria o pensamento acadêmico, ao abençoar essas expressões, que estaria abrindo caminho, junto com outros agentes, como a publicidade e a mídia corporativa, para o começo das “pequenas narrativas autoritárias”. Esse conjunto de ações e fatores apontam para um tipo de pensamento, de narrativas e de práxis que, se não põe fim à história, termina por exterminar o futuro no imaginário de quem aceita tais premissas e consequências.

Este é o contexto em que se dá o massacre de Paris, ao lado dos outros. E Paris chama a atenção não apenas por um preconceito midiático, mas também porque na nossa cultura Paris é Paris: a cidade da Revolução Francesa, da Comuna, da Frente Popular, da Resistência, das jornadas de 1968, sem falar n’Os três mosqueteiros, O Vermelho e o Negro, Ilusões Perdidas, Em Busca do Tempo Perdido… e tanta outra coisa também no cinema e no teatro.

Também há o fato de que, por um conjunto de razões, tem-se mais informação disponível de imediato sobre os acontecimentos de Paris e seus desdobramentos.

O desdobramento mais odioso e problemático dos acontecimentos de Paris é o maior empoderamento da pregação intolerante das direitas e extremas direitas contra os refugiados, como se eles tivessem “a culpa” pelos ataques terroristas. Na verdade, estes mesmos estão fugindo do terror – para o que também contribuiu muito as intervenções das potências do Ocidente, ajudando a levar seus países à destruição, à guerra civil, ao caos e muitas vezes à anomia.

Uma observação mais atenta do noticiário e de análises mais equilibradas sobre a recente tragédia parisiense (lembrando ainda a do Charlie Hebdo e do supermercado judaico) mostra que o epicentro logístico e o caldo de cultura maligna de onde emanou o mais recente ataque não estava em algum “califado remoto”, que pode ter sido o catalisador e o beneficiário de um “mal estar” que estava e está “muito mais próximo” do cenário imediato dos acontecimentos.

Seus vetores foram grupos de jovens que nasceram, cresceram, viveram e vicejaram nas periferias marginalizadas de grandes metrópoles europeias – inclusive Paris, além de suas cercanias, se considerarmos que, de certo modo, Bruxelas é uma “cercania” de Paris. Estes é que se deixaram seduzir pela pregação do Estado Islâmico.

Deve-se ressaltar ainda que dos oito mortos no momento da ação, na noite de sexta-feira 13 (!), sete se autoexplodiram, da mesma forma que os suicidas de Ankara, Beirute, Yola e Kano. Haverá melhor prova da “extinção do futuro” no imaginário destes jovens, em troca de uma problemática entronização no duvidoso panteão (talvez o melhor fosse dizer “pântano”) deste tipo de “martírio”?

O que vemos nestes acontecimentos e seus desdobramentos intolerantes é a mesma necessidade de extirpar de sua narrativa amesquinhada e amesquinhante a presença do “outro”, da alteridade. Nessa linha é que se abole o futuro da imaginação, porque o futuro é também, ou pode ser uma alteridade em relação ao presente. Para esse tipo de imaginação, o futuro “é agora”, porque ele só pode ser a perenidade repetitiva do presente.

Longe, portanto, da rejeição aos refugiados (como quer também a parte mais intolerante da direita brasileira), uma das chaves para fugir desse beco sem saída, ou dessa sinuca de bico, está no oposto, na sua aceitação, até mesmo como expiação da dívida histórica que a Europa tem para com territórios que devastou e em alguns casos continua ajudando a devastar.

A chegada desses refugiados, com as políticas sociais que ela demandará, será uma oportunidade valiosa para pôr fim à segregação das periferias das grandes metrópoles, onde viceja a raiz-tronco do terrorismo neste continente. Sem falar que organizações como o Estado Islâmico, a Al-Qaeda, o Boko Haram e outras parecidas, dependem do ódio anti-islâmico injetado pelas direitas como combustível principal de seu recrutamento da juventude.

O símile dessa anulação da alteridade está em frases de políticos europeus como “só aceitaremos refugiados cristãos”, de dirigentes poloneses e tchecos, ou “deixemos que a miséria fique lá onde ela pertence”, de uma militante da conservadora União Democrara-Cristã (CDU) alemã.

Os acontecimentos de Paris são, portanto, também o sintoma da falência das políticas de integração já no que se refere aos pais ou avós dos jovens envolvidos. O que clama por diagnóstico e ação corretora.