Grécia

A Europa e a democracia de voo curto e nariz comprido

Povo que escolhe romper o cerco da “austeridade” pode ser condenado ao ostracismo, no que depender da hegemonia neoliberal que assola governos, mídia e as escolas de economia no continente

SPIEF 2015/Fotos públicas

Primeiro-ministro grego Alexis Tsipras dá ao referendo de domingo caráter de plebiscito sobre sua permanência

A crise grega – que não é somente grega – está no auge. O governo não pagou a quota de € 1,5 bilhões de euros que deveria pagar ao FMI até ontem (30). Há um referendo no domingo sobre o plano de austeridade que querem continuar enfiando garganta abaixo do país. Os líderes do establishment europeu insistem em dizer que o referendo é, na verdade, sobre se o povo grego quer ou não quer permanecer no euro. Com as limitações de saque impostas, o governo de Atenas liberou o transporte público. Nas rádios alemãs comentam que isso era uma medida demagógica destinada a garantir que o povo votaria “não” no domingo, “como se o governo não necessitasse desse dinheiro”. Manifestações pró e contra as medidas de austeridade acontecem na frente do Parlamento grego, na Praça Sintagma, com milhares de ambos os lados.

Bolsas estão nervosas e em queda. Também caem as ações dos bancos europeus. Quem investe sabe que, se países como a Grécia, Portugal, Espanha e outros se encalacraram com suas dívidas, o sistema financeiro europeu está também encalacrado nas dívidas públicas, apelidadas de “soberanas”. Cresce no sistema de apostas britânico, o mais sensível do mundo depois do jogo do bicho brasileiro, a cotação de que a Grécia vai sair do euro e retornar ao dracma. Analistas conservadores na mídia perguntam-se, perplexos, porque o povo grego não se mostra dócil como o português e o espanhol (apesar do Podemos) e simplesmente obedece aos ditames da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI).

Na confusão e no meio da adrenalina que corre nas veias fechadas do continente, algumas coisas ficaram muito claras em meio à crise.

1. Nunca houve disposição real de negociar alternativas por parte do establishment da zona do euro. O governo grego fez várias concessões a partir do programa com que foi eleito, claramente antiausteridade, mas nada disto foi suficiente. O establishment da zona do euro não queria uma negociação, queria a rendição do governo de Atenas e a desarticulação da Syriza desde o começo do processo, a menos que estes traíssem seus eleitores e seu programa. Exigiram sempre a manutenção das balizas principais da política recessiva que destruiu a economia grega em 25% e criou taxas de desemprego gigantescas (60% entre os jovens): mais impostos sobre as camadas populares, menos salários, menos pensões, menos impostos sobre as corporações e os grandes lucros.

2. Quem conduziu as negociações, definiu-lhes o ritmo e as imposições, foram os ministros das áreas financeiras, não os presidentes e chanceleres. À frente daqueles estava o assim chamado na mídia europeia hawkish (“falcão”, termo derivado da Guerra Fria) Wolfgang Schäuble, o ministro alemão, inspirado em seu credo econômico ortodoxo. A constatação é significativa porque ilustra o predomínio destas áreas dentro e sobre a política e os políticos tradicionais. Nas manifestações antiausteridade, quem aparece com bigodinho de Hitler é a chanceler Angela Merkel (ilação inadequada, mas que mostra o quanto a imagem da Alemanha se deteriora no continente), mas quem dá as tintas, o pincel e a escada para os pintores, além de definir as cores e o design, são os avatares e sacerdotes da área econômica, não se descartando presidentes de bancos centrais, como Jens Weidman, do BCA. Mario Draghi, presidente do BCE, ensaiou uma outra música durante algum tempo, mas depois da reunião do Conselho do Banco que suspendeu o financiamento de liquidez para os bancos gregos a partir de 30 de junho, passou não só a tocar mas também a dançar de acordo com a mesma melodia de fechar as portas para o governo de Tsipras. No Reino Unido, que não participa do euro, quem define o que o governo de James Cameron pode ou não pode fazer é o chamado “chanceler” George Osborne, sumo-sacerdote do orçamento público.

3. A rebeldia grega mostrou que o voo da democracia na Europa de hoje tem alcance curto: quem quiser voar por sobre a cerca que define a jaula da “austeridade” está condenado ao ostracismo, no que depender da hegemonia neoliberal que informa não só os governantes, mas igualmente grande parte da mídia, seus comentaristas, e as escolas de economia majoritariamente no continente. Tsipras, Varoufakis, o governo e o povo gregos se transformaram num caso “exemplar”, que deve servir de baliza para outros possíveis ensaios de independência e soberania, como no caso hipotético do Podemos na Espanha. Além disto, ela tem um nariz de Pinóquio, pois o establishment nega continuamente a realidade. Os planos de austeridade não funcionam, nem vão funcionar, mas são mantidos contra todas as evidências. Bom, em grande parte devido ao fato de que, de outro modo e sob outro ângulo, funcionam… Isto é, no sentido de: (a) desorganizarem o que resta do estado de bem-estar herdeiro da finada social-democracia europeia; (b) reorganizarem esse mundo social de acordo com as balizas do sistema financeiros que levaram às crises provocadas pela debacle financeira de 2007/2008; e (c) redefinirem a geografia europeia em torno da hegemonia do chamado “norte”, uma cortina de fumaça para o predomínio dos sistemas financeiros da Alemanha, Reino Unido, Holanda, em parte o da França, que desfrutam de apoio entre os países nórdicos e exercem enorme poder de sedução sobre os países do antigo Leste Europeu, sobre os demais sistemas e países.

4. Aos governantes do proscênio deste Grand Guignol que é a política europeia cabe providenciar as retóricas que sustentem a ideia da inevitabilidade das políticas neoliberais de “austeridade”, frequentemente de inspiração algo populista e disfarçadamente nacionalista para seus eleitores, embora neguem de pés juntos essa condição, que dê sustentação eleitoral a uma “democracia no aprisco” que tem algo de farsa. O melhor exemplo dessa retórica, que tem algo de tragicômico devido a quem o ofereceu, foi dado pelo vice-chanceler alemão, o social-democrata (!) Sigmar Gabriel, ao dizer há algum tempo que o governo de Berlim não permitiria que os trabalhadores alemães e suas famílias pagassem pelas promessas exageradas de um governo (o de Atenas) “cheio de comunistas”.

5. A situação evoluiu, depois que o governo de Tsipras atribuiu ao referendo de domingo próximo, sobre as imposições econômicas, um caráter de plebiscito para o seu governo. De um lado, está agora o povo cansado e exaurido pela política de “austeridade” que devastou a sua vida (11 mil suicídios desde que elas começaram), submetido à pressão algo chantagista da “catástrofe da saída do euro” (como se catástrofe já não tivesse acontecido dentro do euro), um enorme e assustador fantoche carregado pelos equivalentes gregos aos “coxinhas” brasileiros das manifestações de direita recentes, a mídia privatista e conservadora do país, a mídia conservadora europeia, e todo o establishment econômico-político (nessa ordem) hegemônico na zona do euro e na União Europeia. Na manifestação pró-euro desta terça-feira (30) em Atenas, o que se ouvia eram palavras de ordem do tipo “fora Tsipras”, levadas a cabo por quem perdeu a eleição. O fato é que nesse cenário a posição do governo de Tsipras é bastante difícil. Está isolado dentro do espectro político largamente majoritário nos países europeus. Rússia e China, que poderiam dar algum alívio financeiro, não vão afrontar a União Europeia, nem a OTAN, que vê na Grécia uma pedrinha menor mas indispensável do dominó balcânico e europeu. Se perder o plebiscito, terá muito provavelmente de chamar novas eleições. Se ganhar, continuará frente aos mesmos credores e adversários ávidos por provar sua inviabilidade e provocar a sua queda.

6. Num quadro desses, talvez não haja outro caminho senão abandonar o euro e voltar ao dracma, por mais penoso que seja no curto prazo. Dizem vários economistas, inclusive conservadores, que o governo teria de cotar a “nova-antiga” moeda em 50% do euro, encarecendo as importações, com possíveis reflexos inflacionários negativos na economia, mas restabelecendo a competitividade diante do restante da Europa e alavancando o turismo, importante fonte de renda para o país. Mas isto nos conduz à outra ponta do quebra-cabeças…

… 7. A constatação de que a União Europeia e em particular o euro se transformaram numa jaula onde os sonhos vão se apequenando e os pesadelos se amplificando. A UE foi um sonho plantado num momento histórico em que a social-democracia europeia, voltada para o bem-estar social, era hegemônica como alternativa ao capitalismo desenfreado e ao comunismo que se esclerosava. Mas o sonho foi colhido pela hegemonia conservadora que se sucedeu ao fim da Guerra Fria (que está de volta, se é que sumiu um dia) e à devastação provocada pela um tanto fugaz mas acachapante hegemonia Reagan-Tatcher-João Paulo II – aliança demolidora dos alicerces da social-democracia, que converte os social-democratas e socialistas (e também muitos verdes) de hoje em fantasmas desarticulados e pálidos de seus antecessores, vestidos com o sambenito da fogueira (ou banho-maria) neoliberal. O euro foi um passo mais arriscado, concebido ou melhor, vendido, como um paraíso onde os leões, tigres e ursos da UE conviveriam em paz com os cordeiros, cervos e alces (as economias mais fracas), bebendo da mesma fonte e se auxiliando e se tolerando. Na verdade o que aconteceu foi que os mais fortes continuam ameaçando, subjugando e segregando os mais fracos, para que, no fundo, as raposas, os abutres e os tubarões do sistema financeiro continuem disputando a carniça e sugando o sangue de todo mundo.

O paraíso, de onde ninguém deveria querer sair, virou uma jaula de onde ninguém escapa.