Havia uma pedra no caminho entre o sertão de Pernambuco e o morro carioca

Além de conflitos entre pai e filho, filme sobre Gonzagão e Gonzaguinha mostra várias fases da música brasileira

Cena de Gonzaga – De pai pra filho, de Breno Silveira. Dramas familiares e painel musical, cultural e político do país (©divulgação)

São Paulo – Um senão recorrente ao filme Gonzaga – De pai pra filho, lançado em 26 de outubro, é de um possível excesso emotivo. De fato, há cenas que poderiam soar menos dramáticas sem o fundo musical. Há também o apelo comercial de um longa que deverá se transformar em minissérie na TV. Mas, além de uma história sobre a difícil relação entre Gonzagão e Gonzaguinha, há de se notar uma narrativa sobre duas realidades musicais e sociais brasileiras: de Exu, no sertão pernambuco, terra natal de Gonzaga pai, ao Morro de São Carlos, no Estácio, zona norte carioca, onde foi criado (pelos padrinhos) Gonzaga filho.

Exu é um pequeno município de pouco mais de 30 mil habitantes a 600 quilômetros de Recife. Foi de lá que no início dos anos 1930 saiu Luiz Gonzaga do Nascimento, sanfoneiro da safra de Januário, seu pai, por um desentendimento com o coronel da região. Com a valentia abastecida por umas doses de aguardente (que nunca mais ingeriria), o jovem Gonzaga, moço pobre da roça, desafiou o pai da moça pela qual era apaixonado. Depois de apanhar em casa, vendeu a sanfona e fugiu. Entrou para o Exército no Ceará e nas “forças”, como diz, ficou dez anos. Depois de dar baixa, foi para o Rio de Janeiro ganhar a vida como músico.

Foi ali, nas noites cariocas, que conheceu Odaleia. O casal teve um filho, também Luiz Gonzaga. Teve? Dúvidas até hoje persistem, mas o fato é que o ainda não famoso Gonzagão registrou o menino em seu nome. Com a carreira começando a decolar, ele deixou Luizinho, como era chamado, com os padrinhos, Xavier e Dina, que moravam no Morro de São Carlos. O menino cresceu ali, e também desenvolveu ressentimento pela ausência do pai, que saía tocando pelas estradas do país.

O filme de Breno Silveira (diretor também de Dois Filhos de Francisco e de À Beira do Caminho) conta bem toda essa história. As interpretações dos Gonzagas são boas, especialmente a do ator (Julio Andrade) que parece incorporar Gonzaguinha, seco, atormentado, agressivo, ressentido com o pai. O filme é narrado em flash-back. Começa em 1981, com um encontro entre os dois em Exu. A contragosto, Gonzaga filho procura o pai, supostamente em dificuldades financeiras, para propor um show conjunto. Aí ocorre um erro factual, já que o show, que realmente existiu e ganhou o nome de A Vida do Viajante, começou em 1980.

Pouco amistoso, o encontro vai provocar mais discussões e desentendimentos. Gonzaguinha começa a gravar a conversa, fazendo perguntas para o pai sobre sua vida, a vida de ambos – as várias horas de gravação foram confiadas à jornalista Regina Echeverria, que em 2006 lançou o livro Gonzaguinha e Gonzagão – Uma História Brasileira.

O Rei do Baião, agora recolhido, começa a contar as histórias vividas nas estradas por onde andou. Estrada, diga-se, é um tema recorrente de Breno Silveira. Estrada e música, pois seus trabalhos anteriores também narram situações de artistas viajantes. Neste filme, claro, os pontos altos são as músicas. Mas o diretor acerta ao fazer o contraponto entre o pai famoso e o filho esquecido, o pai conservador politicamente e o filho criando consciência contra a ditadura. Uma cena curiosa é de Gonzagão ouvindo Gonzaguinha em seu quarto, dedilhando ao violão e cantando trechos de Comportamento Geral, música que posteriormente seria proibida pela censura.

Luiz Gonzaga viveu o seu auge nos anos 1940 e 1950, quando fez sucesso em todo o país e se tornou um fenômeno a partir do momento em que, provocado, assumiu a música de sua região, pouco conhecida no Sudeste. Até então, de sua sanfona saíam basicamente valsas, tangos, polcas. Ele começou a virar “rei” quando passou a tocar temas do Nordeste. Depois, adotou um visual estilizado e caprichou nas parcerias, com destaque para Humberto Teixeira e Zé Dantas. Dali sairiam alguns punhados de clássicos da música brasileira. O filme traz boas reconstituições do período.

Ele começou a sofrer o declínio na década seguinte, quando surgiam a Bossa Nova, a Jovem Guarda e outros estilos (fato que poderia ser explorado no filme que, mesmo assim, tem preocupações didáticas). Foi resgatado na geleia geral promovida pelos ícones do Tropicalismo, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, já pelo final dos anos 1960. E o período seguinte deu lugar a uma nova geração de compositores, alguns vindos do Nordeste, casos de Alceu Valença, Belchior e Fagner, e outros do meio urbano sulista, entre eles o próprio Gonzaguinha, um dos músicos oriundos do meio universitário. Ele se formou em Economia, satisfazendo um desejo do pai, que queria um filho “com anel de doutor”, mas nunca exerceu a profissão.

Mais do que criticar possíveis melodramas, é preferível notar a evolução da música brasileira ao longo daquele período e como realidades tão distantes, o rural (Exu) e o urbano (Morro de São Carlos), o conservador e o contestador, podem se encontrar, como diferentes Brasis. De um quase rompimento definitivo, surge a reconciliação entre os dois, sob um juazeiro. Gonzaga pai foi dar atenção à obra do filho, que já se destacava no cenário musical. Gonzaga filho foi cuidar da consagrada obra do pai. Os dois cantaram juntos em 1980 e 1981. “Minha vida é andar por este país”, cantou Gonzagão. “Minha vida é mundo afora”, ressoou Gonzaguinha.