Sem material, professor ‘faz milagre’ para lecionar em SP

Docentes da rede pública dizem que falta até lápis para atividades. Salários baixos e sem reajustes para a maioria também são criticados

Na falta de materiais e infraestrutura, professores tentam “fazer milagre” (Foto: Abr/Marcello Casal)

São Paulo – Depois da progressão continuada, a falta de infraestrutura e salários são os principais problemas apontados pelos professores da rede pública estadual de São Paulo, ouvidos pela Rede Brasil Atual. Os materiais fornecidos pelo governo do estado para os alunos são insuficientes, o que obriga os docentes a reunir, reutilizar, reaproveitar materiais para atender os estudantes.

“Professor faz milagre, um lápis viram dois, as coisas se multiplicam”, anuncia Cristina*, professora de biologia da rede pública estadual. “Eu vivo juntando borracha, caneta e lápis onde eu vejo sobrando para levar para a escola e emprestar aos alunos”, descreve.

Das diversas atividades realizadas na escola, Paula*, professora de Língua Portuguesa, calcula que apenas 40% da infraestrutura e materiais necessários são oferecidos. “Os outros 60% são criação e esforço pessoal do professor pelo ensino”, calcula. “O governo pode investir na escola, mas não investe no professor. O governo não prepara o professor para esse mundo moderno”, dispara.

Tomé Ferraz, professor de física e matemática, das redes estadual e municipal de São Paulo, acredita que o governo estadual sobrecarrega e culpa os professores pela situação da educação no estado. “Ele (governo) joga a culpa das mazelas da educação sobre o professor”, opina.

Ele preparou alunos da rede pública para a Olimpíada Brasileira de Física, deu aulas a mais, levou os jovens com seus próprios recursos para a competição e até no dia da premiação, na Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, e precisou arcar com os gastos. Na volta das atividades, teve o ponto cortado e os dias descontados. “A gente tem de fazer milagre”, reclama.

Se faltam lápis e borracha no dia a dia dos alunos, para a disciplina ministrada por Tomé a situação é um pouco pior. “Não temos material. Como eu vou dar aula de calorimetria sem um calorímetro, sem substâncias químicas?”, lamenta. Ele mesmo responde: “Fico frustrado porque vejo uma geração sendo perdida, mas no que depender de mim, vou comer giz até onde aguentar, porque o aluno não tem culpa”, analisa.

“Professor faz milagre, um lápis viram dois, as coisas se multiplicam”, anuncia Cristina, professora de biologia da rede pública estadual.

Tomé contraiu uma doença no cotovelo pelo uso contínuo da lousa. “Temos lousas imprestáveis. Perdi a força para dobrar os dedos”, argumenta. Como tratamento, o físico teve de fazer fisioterapia e, agora, apaga a lousa com a mão direita, na tentativa de minimizar os problemas na esquerda.

Os colegas, aponta o docente, sofrem com problemas nas cordas vocais, por passarem o dia todo em sala de aula “gritando”. “Eu sou resistente, mas o estresse e a frustração leva muitos colegas a adoecerem”, diz.

Salário de barbeiro

Árvore da miséria

Depois de 28 anos de magistério e com mestrado em Física Quântica, ele ganha R$ 500 na rede pública estadual. Somado à escola municipal, alcança remuneração de R$ 2.200, por 40 horas semanais. Tomé avalia que os professores  têm a pior remuneração entre as carreiras de nível superior. “O que recebemos não é salário para um professor do maior estado da federação. Morando na capital, não dá para sobreviver”, garante.

Ele compara o salário de um professor ao de seu próprio cabeleireiro. “No estado, a hora-aula é de R$ 7,58, já meu barbeiro, que cobra baratinho, ganha R$ 8, por um corte de cabelo de 15 minutos”, exemplifica. Em função dos baixos salários, Tomé lembra que os professores de sua área estão em extinção. “Com poucas faculdades oferecendo o curso de Física e a dificuldade em chegar até o fim, é muito mais rentável ser funcionário da iniciativa privada”, afirma.

Em 2009, ele chegou a ministrar mais de 300 horas de aulas por semana, com aulas de segunda a sexta nas redes públicas estadual e municipal e aulas particulares no final de semana, na casa de alunos, para um salário de R$ 3 mil. Neste ano, decidiu reduzir a carga para dar mais atenção ao filho adolescente. O jovem  agradece, mas os problemas financeiros aumentaram. “Estou em uma situação de aperto financeiro, não consigo pagar todas as contas”, reforça.

“Fico frustrado porque vejo uma geração sendo perdida, mas no que depender de mim, vou comer giz até onde aguentar, porque o aluno não tem culpa”, analisa Tomé Ferraz, professor de física das redes estadual e municipal.

A falta de investimento na qualificação dos professores é outro problema, revela Tomé. “Tenho mestrado, fiz cursos na PUC e na USP, mas para o estado eu sou incompetente”, critica por não evoluir na carreira há oito anos. A obtenção do mestrado também não foi computada para efeito salarial.

Desvalorização

Em Pernambuco, Tomé recebeu medalha de ouro e a comenda do mérito educacional “Professor Paulo Freire”, pelo conselho estadual de educação do estado, por um projeto de incentivo aos alunos de cursos de licenciatura. “O estado de São Paulo não valoriza a formação do professor e também não oferece oportunidade para isso”, condena. “Em oito anos, nenhum curso na área de física foi oferecido”, cita. “Quando a secretaria estadual de educação oferece qualificação tem de ser fora do horário de aula, mas o professor com carga extrema de aula, como fica, então?”, suscita.

Para Paula, o salário “é uma vergonha”. “Você pega um professor de 20 anos no magistério que ganha R$ 1.500. E tem alunos que ganham isso em trabalhos elementares”, revolta-se. “Estamos há dez anos sem aumento”, protesta.

Há dois anos, o governo do estado criou, em lei aprovada na Assembleia Legislativa, um mecanismo que permite evitar reajustes. A Secretaria de Educação promove uma política de aumentos conforme o desempenho em provas de avaliação do professor e o de seus alunos. Apenas 20% dos profissionais são contemplados com correção salarial, enquanto s demais mantém os mesmos rendimentos.

Com remuneração deficitária e sem condições materiais de trabalho, os professores indicam que o desânimo como quase inevitável. “Tem professor que ministra aulas no estado, na prefeitura e na rede particular. Aí ele trabalha demais e não tem como preparar uma boa aula mesmo”, sentencia Paula.

Educação

Rosana Almeida, professora de sociologia da rede pública estadual, defende a tese de que “desacreditar o professor é uma forma de não questionar a incapacidade de gerir a educação” e uma forma de terceirizar uma área que deveria ser essencial.

A docente passou em todas provas estabelecidas pelo governo estadual e em concurso público, mas até hoje não conseguiu ser efetivada. “É revoltante, você é testada, questionada e, depois ter provar sua capacidade todas as vezes”, afirma, decepcionada com os rumos da educação.

*Os nomes de alguns entrevistados foram alterados a pedido dos professores