Desapropriações por empresas particulares em SP são “crime”, diz urbanista

Para especialista, modelo de requalificação urbana aplicado em São Paulo cria insegurança jurídica e acaba com direito à propriedade

Região da Luz e da Santa Ifigênia podem ter até 60% dos imóveis desapropriados por empresa particular. (Foto: Maurício Morais)

São Paulo – A concessão urbanística prevista no projeto de requalificação da Nova Luz “acaba com o direito de propriedade”, avalia a arquiteta e urbanista Lucila Lacreta, diretora do movimento Defenda São Paulo. A requalificação é uma iniciativa da Prefeitura de São Paulo, mas transfere à iniciativa privada a responsabilidade por desapropriações, demolições e exploração comercial dos imóveis. Até 60% dos imóveis de 45 quadras do bairro de Santa Ifigênia/Luz correm o risco de serem desapropriados para demolição.

O projeto Nova Luz atinge a área delimitada pela rua Mauá e pelas avenidas Ipiranga, São João, Duque de Caxias e Cásper Líbero. Além de receber milhares de consumidores diariamente, a região sedia cerca de 15 mil empresas. Perto de 12 mil pessoas também moram no bairro.

Contrária ao modelo de revitalização que desapropria boa parte dos imóveis da região da Santa Ifigênia em plena utilização, a urbanista aponta que “desapropriar para lucrar em cima da propriedade é um crime”. “Vai ser uma desapropriação fugindo daqueles preceitos que a lei determina”, sustenta.

Mesmo desapropriações realizadas pelo poder público só podem ocorrer com critérios rígidos, ensina Lucila. “Porque o poder público não pode sair desapropriando loucamente. Ele só pode desapropriar quando o interesse público e social estiverem claramente definidos. E aí, (no caso da Nova Luz) nada está claramente definido”, aponta a urbanista.

Ela receia que o modelo que o prefeito Gilberto Kassab (ex-DEM, em direção do PSD) tenta emplacar no projeto Nova Luz, ainda este ano, seja estendido para outros locais da cidade e do país. A administração municipal já estaria se preparando para utilizar a concessão urbanística com desapropriações pela iniciativa privada no bairro de Pompeia.

Acompanhe a entrevista completa da diretora do Movimento Defenda São Paulo à Rede Brasil Atual.

RBA – Desapropriações podem ser realizadas por empresas particulares?
Lucila Lacreta – Primeiro é preciso dizer que existe uma lei federal que define os limites da desapropriação que pode ser feita pelo poder público. Somente o poder público pode desapropriar, porque propriedade é um bem muito valioso e não pode ser retirada de qualquer forma. Então o poder público tem exclusividade para despropriação dentro do estrito interesse público e social. Para desapropriar uma propriedade não basta ser poder público, tem de seguir uma série de critérios. Por exemplo, há um imóvel que não está edificado, subutilizado e a Prefeitura tem um problema habitacional, aí o governo pode desapropriar para que ali sejam construídas habitações de interesse social. Em casos muito limitados, o poder público pode delegar para concessionárias de serviço público, que prestam serviço tarifado, por exemplo, Eletropaulo, Sabesp, o Metrô mesmo. A prefeitura delega para essas concessionárias, mas elas estão prestando um valoroso serviço público e para agilizar elas podem desapropriar.

Como funciona o processo de desapropriação?
Para desapropriar, primeiro a prefeitura precisa fazer um decreto de utilidade pública. Só quem pode fazer decreto de utilidade pública é o governo, ou seja, o município de São Paulo, ou o estado, ou o Governo Federal. É preciso ter esse decreto de utilidade pública e depois, como diz a Constituição, o governo pode desapropriar por preço justo, pagando em dinheiro. Isso infelizmente ainda não está acontecendo.

Como funciona na prática a concessão urbanística prevista para ter início ainda este ano no projeto Nova Luz, em São Paulo?
A Prefeitura, com o pretexto de reurbanizar a área – supondo que a região está deteriorada –, lança mão do concessionário urbanístico, que pela sua conta e risco vai fazer as desapropriações necessárias para a reurbanização. Só que ele é um particular e vai desapropriar para ele, particular, construir um prédio no seu terreno. Por exemplo, uma pessoa tem uma loja na Santa Ifigênia e em cima fica a casa dela. Aí, o concessionário urbanístico ganhou a licitação, e independentemente do lojista estar morando e da loja estar cumprindo a função social da propriedade, o concessionário diz: “Isso daí não está bom, eu vou te desapropriar, cai fora, porque ali eu vou fazer um prédio de 10 andares, vou vender e vou lucrar”. Isso foge de toda a conceituação sobre desapropriação. Não há um interesse social configurado. Não há um relevante interesse urbanístico. Isso não vai ser um patrimônio a ser usufruído por todos. Vai ser uma desapropriação fugindo daqueles preceitos que a lei determina. Essa história do particular desapropriar para lucrar em cima da propriedade é um crime. Porque isso acaba com o direito de propriedade. Porque o poder público não pode sair desapropriando loucamente. Precisa desapropriar dentro das regras. Ele só pode desapropriar quando o interesse público e social estiverem claramente definidos. E aí, (no caso da Nova Luz) nada está claramente definido.

São Paulo toda pode sofrer com essa insegurança?
Vai que a Prefeitura acha bacana fazer um projeto urbanístico no Jardim Europa, achando que é subutilizado e diz: ‘vamos adensar’. Elabora-se um projeto, um concessionário urbanístico ganha a licitação, e passa a desapropriar. A que preço? Qualquer pessoa pode fazer isso, quem tiver poder na mão vai fazer uma concessão urbanística nos moldes que está estabelecido aqui.

Existe a possibilidade dessa ideia migrar para o Brasil?
São Paulo é o exemplo, é o carro-chefe. Há cidades que copiam nosso código de obra ipsis literis, com todos os defeitos que ele tem. Isso poderia se disseminar e daí ninguém tem mais direito a coisa nenhuma. Basta um poderoso encanar que ali ele vai querer fazer um projeto, a Câmara aprovar e pronto.