Ditadura brasileira tentou livrar ‘Anjo da Morte’ argentino de prisão na Europa

Documentos abrem possibilidade de colaboração brasileira no maior campo de concentração do país vizinho e mostra preocupação com religiosos progressistas como dom Paulo Evaristo Arns

Astiz passou a ser conhecido como o “Anjo da Morte” em ação contra o grupo Mães da Praça de Maio. Em outubro deste ano, ele foi condenado à prisão perpétua na Argentina (Foto: La Nación/Wikipedia)

São Paulo – A ditadura brasileira (1964-85) fez movimentações diplomáticas na Europa para livrar da cadeia Alfredo Astiz, agente da repressão argentina conhecido como o “Anjo da Morte”. Documentos das Forças Armadas em Brasília trazidos à tona pelo jornal Página12, de Buenos Aires, mostram que o Itamaraty insistiu na tarefa de libertar Astiz mesmo depois de tomar conhecimento de que França e Suécia queriam submetê-lo a julgamento.

À época, 1982, Astiz era prisioneiro da Guerra das Malvinas pela Grã Bretanha. Os telegramas revelados pelo repórter Darío Pignotti indicam que o então embaixador do Brasil em Londres, Roberto Campos, amigo do chanceler argentino Nicanor Costa, sondou a possibilidade de extradição do repressor, em mais um sinal que reforça a articulação firmada por meio do Plano Condor, no qual as ditaduras de nações do Cone Sul trocavam informações e favores.

Astiz passou a ser conhecido como o “Anjo da Morte” pelo ação na qual se infiltrou no grupo fundador das Mães da Praça de Maio, organização que tenta reaver o destino dos filhos mortos pela ditadura, e delatou as reuniões realizadas em Buenos Aires. Na época, foram detidas Azucena Villaflor, primeira presidenta das Mães, e duas freiras francesas que foram atiradas ao mar nas operações que mais tarde foram classificadas como “Voos da morte”, realizadas pelas Forças Armadas argentinas para exterminar a quem considerassem suspeitos. No mês de outubro, o repressor foi condenado à prisão perpétua por estes crimes.

Segundo o jornal argentino, os novos documentos dão mais indícios da existência de uma segunda etapa do Plano Condor, na qual os regimes autoritários colaboraram entre si na tarefa de livrar da Justiça os repressores. Naquele momento, integrantes da ditadura argentina começaram a fugir para Paraguai e Brasil como forma de escapar de punições.

Os telegramas revelaram ainda a intensa participação de Eduardo Massera, um dos chefes da Junta Militar que governou o país vizinho entre 1976 e 1983, nos contatos com Brasília. O Página12 ouviu um ex-prisioneiro do maior campo de concentração argentino que declarou conhecer a colaboração do Brasil a este lugar. Víctor Basterra pontua que a diplomacia brasileira era mantida a par dos fatos na Escola de Mecânica da Marinha (ESMA), comunicação que se prolongou pelo menos até 1982.

A ajuda entre as ditaduras de Brasil e Argentina se intensificou a partir de 1975, mas já existia antes disso, e passou a ter ações concretas nos dias anteriores ao golpe na nação vizinha, em 24 de março de 1976. Menos de uma semana antes, foi sequestrado em Buenos Aires o pianista Francisco Tenório Cerqueira Santos, que havia participado de um concerto realizado no Teatro Gran Rex por Vinícius de Moraes e Toquinho.

Telegramas mostraram ainda que os militares dos dois países estiveram atentos às movimentações de religiosos brasileiros, em especial de Dom Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo. Os comandantes da caserna tinham especial preocupação com a propagação da Teologia da Libertação, surgida pouco antes e que defendia a ideia de que os trabalhadores tinham direito a serem atores das próprias histórias. Outra questão envolvida era o financiamento internacional recebido nos trabalhos de bispos e cardeais progressistas, no geral com recursos enviados da Europa.