A prisão de Ratko Mladic na Sérvia

Ratko Mladic (à esquerda) ao lado do ex-líder sérvio Radovan Karadzic (Foto: © Ranko Cukovic/Arquivo/Reuters) O ex-general Ratko Mladic, de 69 anos, era considerado o criminoso de guerra mais procurado […]

Ratko Mladic (à esquerda) ao lado do ex-líder sérvio Radovan Karadzic (Foto: © Ranko Cukovic/Arquivo/Reuters)

O ex-general Ratko Mladic, de 69 anos, era considerado o criminoso de guerra mais procurado da Europa. Foi preso num vilarejo da Sérvia, onde estava foragido há vários anos, por forças de segurança sérvias. Sua detenção e transferência para a capital Belgrado foram comemoradas pelo presidente da Sérvia como um passo importante para a desejada admissão do país na União Européia.

Ratko Mladic é apontado como o principal responsável pelo “Massacre de Srebrenica”, cometido em julho de 1995, durante as guerras de secessão na região. Em alguns dias de meados de julho daquele ano, tropas sérvias sob o comando de Mladic cercaram a cidade de Srebrenica. Sabendo o que ia acontecer, milhares de homens (entre eles jovens e idosos) se refugiaram nos matos próximos. Foram caçados implacavelmente. 8.000 foram assassinados, muitos com requintes de crueldade e tortura. Consta que até bebês foram mortos, e que um velho foi forçado a comer o fígado do filho. Todos eram muçulmanos. Srebrenica é uma cidade na hoje fronteira entre a Bósnia-Herzegovina e a Sérvia, do lado bósnio. Este é considerado o maior massacre da guerra que grassou na região, basicamente entre 1990 e 1995. Houve muitos, cometidos por todos os lados envolvidos no conflito, mas a maior parte se deveu a tropas sérvias contra seus inimigos. Essa guerra é considerada a maior de “limpeza étnica” na Europa desde a Segunda Guerra Mundial e os campos de concentração nazistas. Também é uma guerra que se destacou pelo número de mulheres estupradas, na esmagadora maioria muçulmanas: as estimativas falam de um número entre 20 mil e 50 mil. Houve até campos de concentração especiais montados para “acolher” as crianças nascidas desses estupros.

A Otan interferiu no conflito, realizando bombardeios aéreos em toda a região, contra os sérvios. Descrevi as feridas ainda não cicatrizadas na cidade de Belgrado em recente post aqui no blog.

As raízes dessa guerra (às vezes indevidamente chamada de “guerra dos Bálcãs”) são muito antigas, remontando aos “pequenos nacionalismos” na região, estimulados pelas disputas entre as potências européias que antecederam a Primeira Guerra Mundial.

Mas sua raiz imediata está na dissolução da antiga Iugoslávia, depois da morte do Marechal Josef Broz Tito, líder e herói da resistência anti-nazista. Os próprios nazistas deram sua contribuição para acirrar as rivalidades, criando um estado-fantoche na Croácia que passou a auxilia-los nos genocídios variados que cometeram na região.

No começo dos anos 90 a Liga Comunista Iugoslava rachou, culminando e ao mesmo tempo dando um novo impulso à nova emergência daqueles “pequenos nacionalismos”(mas todos sonhadores de estabelecer um grande país, a “grande Sérvia”, a “grande Croácia”, etc.) que permaneciam submersos sob o ideal da federação iugoslava (que já existira sob a forma de reino, no passado) e a liderança de Tito, um dos fundadores do movimento dos “não-alinhados” na década de 60, com Nasser, Nehru, Nkrumah e Sukarno.

A partir desse racha deflagraram-se, nas disputas políticas, 3 guerras dentro dessa “guerra da Iugoslávia”, todas  elas de independência: a da Eslovênia, a da Croácia e a maior e pior delas, a da Bósnia-Herzegovina. Na Sérvia o então presidente Slobodan Milosevic proclamou-se o continuador do ideal iugoslavo e começou uma campanha para submeter as demais regiões. Curiosamente, Mladic nasceu na região (e futuro país) que ajudou a devastar: a Bósnia-Herzegovina. Aí seu pai morreu, como um membro da resistência anti-nazista, em 1945. Isso pode explicar alguma coisa? Vá se saber.

Entre várias missões Mladic recebeu a de submeter a Bósnia-Herzegovina. Até hoje se discute se ele agiu mais por conta própria ou se cumpria estritamente ordens de Milosevic, o que agora talvez se possa esclarecer. Milosevic morreu em 2006, enquanto era julgado por um tribunal internacional em Haia.

O fato é que Mladic voltou-se com especial fúria contra a população de seu estado natal, em especial contra os muçulmanos, vistos como “invasores” do “espaço sérvio”. Cercou Sarajevo, a capital da região, onde houve mortes inclusive por inanição, e resolveu tirar Srebrenica do mapa.

Uma ironia: Srebrenica fazia parte de uma área declarada “refúgio sob proteção da ONU”. Havia 400 soldados holandeses estacionados nas vizinhanças de Srebrenica. Muitos habitantes procuraram refúgio em seu acampamento, sem resultado. Foram infiltrados por agentes de Mladic, e também conduzidos a massacres, num episódio até hoje mal esclarecido, mas que agora poderá, talvez, ser explicado. Isso permanece até hoje como uma “mancha” na história da ONU e da OTAN. Enquanto esta bombardeava a infra-estrutura sérvia na região, supostamente para “proteger a população civil”, ambas permaneceram inermes e impassíveis diante de episódios como o de Srebrenica. Consta que os soldados holandeses dispararam tiros por sobre as cabeças dos soldados sérvios quando estes marcharam para a cidade-vítima o que, evidentemente, não os deteve.

Hoje na região convivem ou acotovelam-se os seguintes países: Eslovênia, Croácia, Sérvia (que compreende a República Autônoma de Vojvodina), Bósnia-Herzegovina (que compreende a República Autônoma Srpska), Montenegro, Macedônia e agora também o Kosovo, província sérvia que declarou unilateralmente sua independência, ainda não reconhecida pela Sérvia. Ao redor desse conglomerado estão, em sentido anti-horário: Albânia, Grécia, Bulgária, Romênia, Hungria, Áustria, Itália, e o Mar Adriático.

Na biografia de Mladic há ainda um episódio tortuoso, que é o suicídio de sua filha de 24 anos, coisa que parece ter ajudado a “descarrilha-lo” mais ainda.

Mas fica no ar, de todo modo, essa questão perplexa: como o jovem, descrito como um “fervoroso comunista” na juventude, veio dar neste carrasco brutal hoje à beira de ser levado a julgamento em Haia, se Belgrado concordar em deporta-lo, coisa que parece que vai fazer.

Um último lembrete: na mídia internacional não faltou quem lembrasse a diferença de tratamento entre Mladic, preso e levado perante um tribunal, e bin Laden, assassinado e depois “desaparecido”.