Identidade nacional

Samba completa 100 anos de resistência e controvérsia

Expressão da cultura brasileira, primeiro samba registrado chega a seu centenário. História de preconceito, perseguição e resistência tem homenagem da CUT, no Brás, neste sábado

arquivo/ebc

O Dia Nacional do Samba é comemorado todo 2 de dezembro, após elaboração da Carta do Samba

São Paulo – Enraizado na cultura popular brasileira, o samba se funde com a identidade nacional. Como sinestesia, essas cinco letras carregam significados, despertam sentidos e afloram as histórias de um povo. Rio de Janeiro e Bahia foram os nascedouros do estilo. A pioneira canção Pelo Telefone, do compositor Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos, 1890-1974), foi registrada no dia 27 de novembro de 1916. Cem anos depois, a flecha do tempo viu o samba crescer, resistir e se definir como tradição controversa.

O centenário comemorado no último domingo divide a semana com outra data importante: hoje (2), Dia Nacional do Samba. A origem deste, porém, não tem ligação com o registro da canção de Donga, como explica o professor Alberto Ikeda, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), especialista em cultura popular: “A data se deve à aprovação de um documento chamado ‘Carta do Samba’, com origem em um grande congresso realizado em 1962”.

“Sambistas, membros de escolas de samba, pesquisadores, antropólogos e musicólogos se reuniram durante uma semana. No fim, foi elaborado o documento organizado pelo baiano antropólogo Édison Carneiro”, afirma. Entretanto, mesmo quase 50 anos após o surgimento do ritmo, a carta que reúne características do samba não teve ampla aceitação, especialmente de setores conservadores, que ainda o viam como algo subversivo.

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“Em 1964, deputados fluminenses propuseram a aprovação oficial do documento e que o Rio de Janeiro aprovasse o Dia do Samba. Mas isso não foi aceito nem assinado pelo governador da época, Carlos Lacerda, da UDN, partido que esteve por trás das tentativas de golpe contra governos nacionalistas e trabalhistas nas décadas de 1940, 1950 e, enfim, consumado em 1964. Ele era reacionário e não achou nada interessante. Porém, o projeto voltou para a Assembleia Legislativa que acabou conseguindo oficializara data.”

A visão de Lacerda era carregada, possivelmente, do preconceito que marcou o samba desde o início de sua história. As raízes do gênero estão entre os negros baianos que migraram para o Rio de Janeiro no fim do século 18, como explica o professor: “As origens do samba estão nos batuques africanos, depois com o remoto Lundu e, lá por 1870, surge o maxixe. Eram bailes de camadas sociais periféricas de negros. Seria como o funk ou o rap de hoje quanto a referência de grupo social”.

“A relação do samba com outras classes sociais era complicada. O ritmo era completamente mal visto, era caso de polícia. Uma roda de samba era motivo para chamar a polícia, que apreendia os instrumentos e muitas vezes detinham as pessoas, os sambistas”, afirma Ikeda. “O samba era duramente perseguido, existiam proibições: ‘Ficam proibidas as arruaças e os sambas’, diziam informes”, lembra.

A mudança gradual da visão que criminalizava o samba, de acordo com o professor, começou na década de 1930, no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945). “Getúlio, com sua visão do trabalhismo, tinha interesse em agradar as massas, e o que tinha grande penetração na população mais pobre era o samba, em especial no Rio de Janeiro. Então, começaram a organizar concursos e os desfiles a partir de 1932.”

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Professor Ikeda, especialista em cultura popular brasileira

Mas o estigma e o preconceito perduraram, como mostra a rejeição de Lacerda. “Mesmo na década de 1960, a polícia baixava em rodas de samba de jovens negros sambistas e acabavam com tudo. Socialmente, o ritmo ainda era mal visto, bem como todas as práticas negras. Vemos isso até hoje, sobretudo grupos que demonizam praticas religiosas negras. Ainda existe perseguição, agora mais religiosa. Na época, as elites tinham medo do ‘feitiço’ dos negros, então eles reprimiam”, diz Ikeda.

Canção de denúncia

Para comemorar os 100 anos do samba, a CUT São Paulo vai realizar uma roda no sábado (3). A festa reunirá grupos de diversas comunidades que estudam e praticam a música no saguão da sede da central, na Rua Caetano Pinto, 575, Brás, região central da cidade de São Paulo, das 14h às 17h. O evento será transmitido ao vivo pela Rádio Brasil Atual na FM 98,9 (Grande São Paulo), 93,3 (litoral paulista) e 92,7 (noroeste paulista).

A ligação do ritmo com classes sociais periféricas e um passado ligado ao trabalhismo estimulou a entidade a realizar o evento. “O samba, além de fazer parte da história da formação da classe operária, traz a reflexão sobre a exclusão da população negra na formação de nossa cultura e sociedade. Hoje, o samba é celebrado, porém nem sempre foi assim. No passado, quem gostava e fazia samba era criminalizado e perseguido”, diz o presidente da CUT São Paulo, Douglas Izzo.

De fato, de acordo com o professor Ikeda, a resistência foi ponto central do estilo. “O samba mais tradicional, com a presença de negros baianos, sempre foi retrato da sociedade que o produz. Era muito comum os sambistas falarem de problemas, dificuldades e mazelas vividas por esses grupos”, afirma.

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Donga, compositor de ‘Pelo telefone’

“Mesmo o dito primeiro samba Pelo Telefone, embora não exista a certeza, a letra original dizia: ‘O chefe de polícia/ Pelo telefone/ Mandou avisar/ Que na Carioca tem uma roleta para se jogar’. O fato de existir na época um texto como esse revela uma denúncia. É algo que vemos hoje no Brasil, autoridades públicas levando grana em função de benefício pessoal relacionado com algum malfeito”, afirma o professor, que classifica esse primeiro samba registrado como “um documento de denúncia de uma autoridade levando propina para autorizar o jogo no Largo da Carioca (centro do Rio de Janeiro). Um documento histórico.”

Samba e consumo

“As características do samba foram mudaram, especialmente ao longo da década de 1960, quando as escolas de samba se transformaram na grande referência da cultura brasileira”, afirma Ikeda. Tais mudanças, para o professor, acabaram transformando o ritmo em algo controverso, especialmente com a cultura do consumo abraçando o estilo. “De forma genérica, o samba ainda é um instrumento de socialização, de referência de grupos sociais manos favorecidos, mas o samba do carnaval, do desfile, é completamente segregado.”

“Os poucos negros que estão nos desfiles do carnaval ali estão por competência técnica, como bateria, mestre sala e porta bandeira, ritmista e ala das baianas. Mas no geral, os desfiles estão destinados para quem tem grana para pagar uma fantasia de mil reais. E não é a população pobre negra que tem o dinheiro. Você também encontra os negros empurrando carros alegóricos para o brilho das madames que ficam lá em cima”, critica Ikeda.

Mesmo o sentimento de orgulho brasileiro pela expressão do samba como forma artística unificada não é uma realidade completa. “O samba se tornou referência nacional e se generalizou, espalhou por interferência de interesses de meios de comunicação, do dinheiro e da política. Mesmo o local, o ritmo não é nacional. Ceará, Rio Grande do Sul, Mato Grosso não tinham isso. Isso vem dos meios de comunicação e houve influência e ingerência política para que isso acontecesse”, afirma.

Alimento espiritual

A lógica do lucro que rege os desfiles de escolas de samba, ou como Ikeda chama “o carnaval confinado”, acabou por “afastar os negros de sua própria expressão cultural no processo de inserção da expressão como referência da cultura brasileira”. Contudo, o professor pondera que nas ruas, nos blocos, a natureza do samba ainda vive.

“É fundamental que o samba de raiz, o partido alto, o pagode, praticados nos bares, nas esquinas, trazem a sensação de se sentir irmanado com pessoas da mesma comunidade. Essas expressões estabelecem uma comunicabilidade e sociabilidade horizontal entre pessoas de uma geração e, sobretudo, estabelece uma hierarquia na linha do tempo. O samba rememora os pais e você localiza o indivíduo em um espaço social, lincando o homem e seu passado. Essa é a importância da tradição no contemporâneo, o alimento espiritual que situa o indivíduo no tempo social, com uma identidade cultural geracional”, afirma o professor.

“O samba tem a importância da tradição no contemporâneo, o alimento espiritual que situa o indivíduo no tempo social, com uma identidade cultural geracional”, afirma Ikeda

O outro lado do carnaval

A lógica do capital, e “trazer o samba estritamente para o lado comercial do lucro, exclui a possibilidade de alimento espiritual”, diz Ikeda. “Por exemplo, alguns anos atrás, uma escola de samba do Rio de Janeiro, ao ver o tempo de desfile estourando, fechou o portão antecipadamente, impedindo a velha guarda de fora. Isso é uma ofensa moral e ética. Excluir a origem é uma afronta de uma imoralidade absoluta. Mas vale tudo para ganhar”, lembra.

Pelo outro lado, está o que Ikeda chama de “reação ao gigantismo” do carnaval confinado: os blocos de rua. “Os blocos são a própria origem. A retomada disso é importante pois questiona o modelo de que para participar do carnaval é preciso pagar, o modelo da expressão do luxo estético. O carnaval de rua é interessante pois recupera a sociabilidade do espaço público.” Ikeda apenas lamenta o fato de que o recrudescimento deste modelo não vem das classes populares negras periféricas. “Infelizmente as iniciativas não partiram dos sambistas originais, mas de grupos intelectualizados de formação universitária que ganharam uma visão crítica”, conclui.