Sucatear e privatizar

Linhas privadas de transporte, que não estão em greve, têm piores serviços mas ganham mais que estatais

Com a tarifa de remuneração, governo garante que as concessionárias nunca deixem de lucrar. Especialistas apontam que repasse causa rombo nas contas do Metrô de São Paulo. Parlamentares também criticam Tarcísio por apostar no conflito ao não liberar as catracas

Michel Almeida @michelfalmeida/Via Trolebus
Michel Almeida @michelfalmeida/Via Trolebus
"As concessões nunca perdem. A estatal é quem garante o lucro das concessionárias. Por consequência, a estatal perde dinheiro", apontam especialistas

São Paulo – Exaltadas pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), as linhas privadas do Metrô de São Paulo e da CPTM vêm transferindo recursos públicos para entes privados, sucateando os serviços e diminuindo o montante de recursos destinados às linhas que continuam sob gestão estatal. É o que mostra um levantamento da plataforma Plamurb, que investiga a situação do transporte sobre trilhos. As contradições foram lembradas por especialistas nesta terça-feira (3) diante da declaração do governo de São Paulo de que a greve unificada mostra que a privatização “é o caminho”.

Paralisados desde às 0h de hoje, os trabalhadores do Metrô, CPTM e Sabesp protestam contra os planos de Tarcísio de conceder os serviços essenciais à iniciativa privada. E a avaliação é que existem argumentos e exemplos que mostram que o motivo da greve é justificado. De acordo com a Plamurb, a concessão no Metrô, por exemplo, vem provocando um rombo na operação estatal. Isso ocorre porque o governo repassa para as concessionárias ViaQuatro e a Via Mobilidade uma tarifa de remuneração que é superior à tarifa média paga ao Metrô.

No caso da ViaQuatro, que pertence à CCR e administra a Linha 4-Amarela desde 2006, ela recebe desde 1º de fevereiro o subsídio de R$ 6,3229. O valor está R$ 1,92 acima da tarifa pública que é cobrada dos passageiros, de R$ 4,40. Já o metrô estatal não tem tarifa de remuneração. Ele recebe uma tarifa média, calculada pelo total arrecadado e dividido pelo número de transportados no ano. Em 2022, a tarifa média foi de R$ 2,07. Comparando os dados do ano passado, o estudo apontou que a concessionária recebeu, em média, cerca de R$ 2,5 milhões, transportando 660 mil passageiros.

Estatal garante lucro às concessionárias

Enquanto que o Metrô estatal, embora tenha transportado em média 2,6 milhões de pessoas, recebeu R$ 5,3 milhões por conta da tarifa de R$ 2,07. O montante indica que a ViaQuatro transportou quatro meses menos, mas recebeu praticamente a metade do valor que o Metrô deveria receber. Além disso, o contrato de concessão também garante prioridade da ViaQuatro no recebimento dos valores que saem de uma conta chamada de Compensação. A segunda prioridade é da ViaMobilidade, também da CCR, que administra a Linha 5- Lilás do Metrô, a Linha 17-Ouro do monotrilho e as Linhas 8-Diamante e 9-Esmeralda dos trens. A CPTM e o Metrô são os últimos a receberem os valores.

A situação, de acordo com uma reportagem do Brasil de Fato, vem gerando um quadro em que o lucro apenas da ViaQuatro aumentou cerca de 45%, entre 2015 a 2019. Saindo de R$ 375 milhões para R$ 545 milhões. Embora o número de passageiros tenha crescido somente 16,5% no período. Em paralelo, entre 2011 e 2015, o Metrô estatal deixou de receber ao menos R$ 1,1 bilhão no governo de Geraldo Alckmin (então PSDB, hoje PSB).

“O spoiler é o seguinte: as concessões nunca perdem. A estatal é quem garante o lucro das concessionárias. Por consequência, a estatal perde dinheiro, fica deficitária e o governo alega que precisa privatizar”, contesta a presidente do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, Camila Lisboa. A contradição também foi destacada pelo coordenador de Mobilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Rafael Calabria, que observou que a privatização pode encarecer e piorar os serviços.

Privatização e piora

Em sua conta na rede X, antigo Twitter, Calabria listou diversos serviços que foram concedidos à iniciativa privada e trouxeram problemas. “Apontar que o serviço de ônibus urbano é operado por privados em todas as maiores cidades do Brasil já deveria ser suficiente pra mostrar que conceder não é uma mágica. Pode dar muito errado. Serviço ruim, caro, pouco transparente, oligopolizado etc.”, contestou. O especialista também lembrou do caso da Supervia que administra os trens metropolitanos no Rio de Janeiro e tem a tarifa mais cara do Brasil. E que registra intervalos de até 1 horas e trens precários.

A situação também se compara com as linhas 8 e 9 operadas pela ViaMobilidade. Sob a gestão privada, as duas linhas apresentaram o triplo de falhas daquelas geridas pelas estatais: foram 16 episódios, incluindo graves descarrilamentos, apenas neste ano. Assim como a concessão do serviço funerário na cidade de São Paulo, que registrou alta de 400% nos preços. “Ah, mas as linhas 4 e 5 são boas. São boas porque a infraestrutura (feita pelo estado) é recente. Não deu tempo de precarizar. E o Estado paga uma grana altíssima super mal calculada, que deve estar segurando a imagem”, rebateu Calabria.

De acordo com o especialista, a privatização do Metrô e da CPTM certamente devem aumentar o valor dos serviços. “O motivo central: quem vai pagar a conta é o usuário pela tarifa! Com um agravante que fica mais claro a cada dia nos ônibus: pra essa conta dar certo o veículo tem que estar lotado de pagantes! Os contratos pagam por passageiro transportado. Quanto mais lotado mais rentável. Mesmo que fiscalize, vale a pena para o empresário lotar e cancelar viagem ‘não rentável’. (…) E o Tarcísio quer repetir esse modelo, sem nem considerar conversar ou estudar”, contestou o especialista.

Tarcísio apostou no conflito

Antes da greve conjunta nesta terça, as categorias pediram ao governador uma audiência para discutir o tema, mas o encontro até hoje não foi marcado. No caso dos trabalhadores do transporte sobre trilhos, as entidades da categoria chegaram a propor ao governador a substituição da greve por um dia de catracas livres. O objetivo era permitir com que os passageiros viajassem sem cobrança de passagem e ao mesmo tempo protestar contra o plano de privatização da CPTM e do Metrô. No entanto, Tarcísio recorreu da decisão e a Justiça acatou o pedido, alegando “alto risco de tumultos e possíveis acidentes nas estações”.

A atitude do Executivo estadual foi também criticada pelo deputado federal Guilherme Boulos (Psol-SP). “A intransigência do Governo de SP é a grande responsável pela Greve de hoje no Metrô/CPTM. Os trabalhadores propuseram em juízo liberar as catracas em vez da paralisação, pra não prejudicar os usuários. O Governo Estadual recusou a proposta. Apostou no conflito e não no diálogo”, afirmou.

Nas redes sociais, parte da população também vem demonstrando apoio à paralisação, apesar da tentativa de criminalização pelo governo e a imprensa comercial. “Não há greve mais justa do que contra a privatização dos serviços públicos. Nossas necessidades não são objetos dos lucros deles. Água e transporte não são mercadorias. Todo apoio contra a privatização do metrô de SP e da Sabesp. Onde a privatização manda, os serviços degradam”, advertiu o filósofo, psicanalista e professor Vladimir Safatle.

Confira as repercussões:

Redação: Clara Assunção – Edição: Helder Lima


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