Campeã de produção, adoecida e abandonada

Lesionada após ser usada como modelo de ritmo de produção no frigorífico Seara, ex-funcionária tenta na Justiça uma decisão 'para que nunca ninguém passe pelo que estou passando'

Vilma Fávero: explorada até ficar doente e abandonada pela empresa, no auge da carreira produtiva (Foto: Arquivo pessoal)

Sidrolândia (MS) –  Olhos rápidos e mão adestrada. Componentes imprescindíveis para uma campeã brasileira da sexagem, a técnica de separar pintos machos e fêmeas para a indústria avícola, na qual, aliás, dona Vilma é bicampeã. “É preciso olhar pela asa. São diferentes as duas camadinhas. Na fêmea, a de baixo é maior e a de cima é menor. No macho, as duas são iguais”, ensina. 

Calma, Vilma Fátima Favero, “encostada” aos 42 anos, trabalhava na Seara de Sidrolândia, no interior do Mato Grosso do Sul, como “ajudante agropecuária”. “A gente separa os pintos, põe na caixa, vacina, forma o lote e põe no caminhão.” Cada caixa leva cem aves. “Tinha gente que não aguentava e desmaiava, pois muitas vezes se varava a noite. Começava às duas da tarde e largava por volta da meia-noite. Muitas vezes passava do horário, pois eram 130 mil pintos e apenas quatro pessoas para sexar. Se alguém faltava era pior, o trabalho acumulava para ser dividido entre quem se encontrava. O ritmo aumentava ainda mais, insuportável”.

Cultuada como modelo

A ajudante mostra as fotos de quando era cultuada como “modelo” e “incentivo” a ser seguido pelos demais trabalhadores do frigorífico da Seara (então pertencente à Cargill, hoje à Marfrig). A gerência e seus capatazes aplaudiam tamanha rapidez e eficiência. Além do bicampeonato brasileiro, Vilma Favero também foi vice-campeã, concorrendo com outros 52 incubatórios da Sadia, Perdigão, Avipal e da própria Seara.

Mostra mais fotos: ela própria separando os pintos, no jantar promovido pela empresa Merial, que fornecia as vacinas e os prêmios. O micro-ondas conquistado, os colegas da equipe sorrindo. “Foi feita uma reportagem e até saiu na rádio. Deram uma festona. Éramos exemplo.” Não demorou muito tempo e a dor chegou, inclemente.

Logo vieram os remédios, os laudos, a incapacidade crônica, permanente. E a negativa da empresa, que não reconhecia que ela trabalhava naquela seção e, consequentemente, a suspensão do convênio médico. As fotografias viraram provas materiais contra a empresa. Pergunto o valor da pilha de remédios. “Às vezes tem no posto da Prefeitura. Quando preciso comprar, passa de R$ 200 e tem remédio que eles não dão. Meu dinheiro desaparece.”

Hoje a dor é insuportável nos dois ombros, comprometendo o braço inteiro. A tendinite e as cinco hérnias de disco completam o quadro. “Não trabalhei um dia para a Seara. Não foi um dia, foram 14 anos, um mês e dez dias. Agora estou afastada há quatro anos. O dono larga nem os cachorros como eles me largaram”, desabafa, com os olhos fixos. Numa das mãos mostra novamente a foto, jovem, premiada; na outra a radiografia da coluna em frangalhos. “Cortaram o meu plano médico e dizem que estou devendo R$ 8 mil reais para a Unimed”, informou.

Ligações perigosas

No início do problema o médico do INSS, a quem Vilma e um sem número de trabalhadores acusavam de ter vínculo funcional com a Seara – chegou a recusar o afastamento e deu alta. Mesmo com os exames que apontavam tendinite nos dois braços e com cinco hérnias de disco na coluna. “Espécie 31”, diz. A Previdência tem dois códigos de doença profissional: o 91, que garante estabilidade, obrigando a empresa a recolher o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), ao ser reconhecida como doença ocupacional do trabalho; e o 31, que pode ser qualquer doença não vinculada com a atividade profissional.

A quase totalidade dos casos da Seara em Sidrolândia são de espécie 31. “Antes de emitir o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT), que poderia garantir a estabilidade, eles já demitem”, denuncia a advogada Valdira Ricardo Galo Zeni. Acompanhando há dez anos as práticas da empresa na cidade, Valdira alerta que o grande problema das doenças ocupacionais é que não são visíveis: “Eles estragam, dispensam e põem outro no lugar. As mulheres, por exemplo, acabam perdendo o movimento dos membros superiores e nem sequer conseguem pegar o filho no colo ou fazer um simples trabalho doméstico”.

Vilma lembra que no seu caso houve desvio de função. Embora trabalhasse na “sexagem”, era contratada como “leitorista”. Assim, a empresa se desobriga com o funcionário, uma vez que alega não ter sido responsável pela enxurrada de enfermidades que provocou em ambiente de trabalho tão hostil. Para completar, a ex-ajudante já precisou fazer duas operações na perna. “É que está ficando mais curta pelo problema da coluna”, diz.

Tomografia do caos

Datada de 20 de abril de 2009, uma tomografia computadorizada espiral aponta um processo degenerativo que atinge as articulações e causa dores intensas – entre outras anomalias na coluna vertebral –, resultantes de um processo longo e penoso de completa falta de assistência. Em 2002, Vilma lembra que amorteceu o dedo. “Não tinha força e a médica da empresa me deu 15 dias. A médica do posto de saúde tinha pedido seis meses devido às complicações, mas a empresa disse que não podia ficar sem mim na formação do lote. A dor começou a apertarr. Eu já não tinha mais forças para empurrar as caixas para a esteira. Tudo foi amortecendo. Ao mesmo tempo foi crescendo o medo de ganhar as contas, uma pressão medonha. Faltava gente e depois de sexar, ainda fazia a formação do lote.”

O contato dos funcionários da seção em que Vilma trabalhava com o formol, produto químico utilizado para a desinfecção, também era escondido pela Seara, pois acarretaria em adicional de insalubridade. “Amoitaram tudo e sempre que baixava a fiscalização davam um jeito de não ter ninguém trabalhando. Mentiram para a perita, para mim e para o advogado. A Seara sempre inventava alguma coisa no dia da inspeção. Para cada um de nós dizia uma coisa, para não ser fiscalizada naquele dia. Dá para ver o quanto estão mentindo.”

Seu marido, que também foi funcionário da Seara, morreu há dois anos e meio sem que a empresa sequer avisasse os colegas. “Ele trabalhava com carregamento de ovos, um peso enorme, e abriu o intestino. Deu uma hemorragia interna. Antes de morrer, ele havia pedido as contas da Seara, pois quando carregava peso sangrava. A roupa era branca e ficava com muita vergonha. Saiu e não conseguiu nada. Nunca mais ficou bom. Morreu sem assistência”.

Sindicato denuncia

De acordo com Sérgio Bolzan, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Alimentação de Sidrolândia, a vergonhosa prática daqueles “campeonatos” remonta um tempo em que ainda não havia a entidade sindical na cidade. “Hoje estamos vigilantes, apurando uma a uma as denúncias que, infelizmente, se multiplicam diante da intensidade do ritmo de trabalho, das longas e extenuantes jornadas, da falta de fiscalização mais ágil e rigorosa por parte do Ministério do Trabalho. Vale lembrar que a Marfrig comprou a Seara da Cargill com recursos do BNDES, e que deveria ter se comprometido com contrapartidas sociais, como a de investir em saúde e segurança no trabalho. Infelizmente, temos hoje um batalhão de trabalhadores mutilados, que estão afastados, bancados pela Previdência, enquanto a empresa se desobriga, não assumindo suas responsabilidades”, denuncia Bolzan, que também é dirigente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac/CUT).

Bolzan informa que a Seara já perdeu ação no Tribunal Superior do Trabalho em relação à necessidade de estabelecer pausas de 20 minutos a cada 100 de trabalho. A medida visa a garantir a recuperação muscular dos funcionários, pondo fim à verdadeira epidemia de doenças que tem provocado. “Após perder no TST, a empresa preferiu recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) a aplicar o artigo 253 da Consolidação das Leis do Trabalho”, denuncia o sindicalista.

Na avaliação do presidente da Contac/CUT, Siderlei de Oliveira, a aprovação da Norma Regulamentadora dos Frigoríficos, que vem sendo debatida pela Comissão Técnica Paritária Permanente, garantirá melhores condições de saúde e trabalho ao ramo da alimentação ao contemplar a redução do ritmo de trabalho, a redução do tempo de exposição dos trabalhadores e a mudança ergonômica dos ambientes de trabalho. 

O processo movido por Vilma contra a Seara corre na Justiça e se encontra na capital do estado, Campo Grande. Para o Sindicato e a Contac/CUT, o reconhecimento da injustiça poderia fortalecer outras ações contra as mazelas das indústrias avícolas e pela aprovação da NR dos Frigoríficos. Para a trabalhadora, seria um importante passo “para que nunca alguém passe pelo que estou passando”.