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Com mais ações por remédio e hospital, STF entra no debate da judicialização da saúde

Aumento do número de casos, aliado à insuficiência do atendimento da rede pública levou Supremo a incluir parte dos processos no chamado instrumento de 'repercussão geral'

reprodução/cnj

Brasília – O Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu entrar para valer no debate sobre a judicialização da saúde, que consiste na tramitação, nos tribunais brasileiros, de processos pelos quais os cidadãos pedem acesso a leitos em hospitais, remédios fornecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e até para ter direito à marcação de consultas e cirurgias de urgência. Segundo os últimos dados disponíveis no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), chegou-se a 392.921 processos em 2014.

Esta semana, o Supremo transformou dois processos que abordam a obrigatoriedade de o poder público fornecer medicamentos de alto custo e pagar remédios sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em casos de repercussão geral. Por esse instrumento, a decisão a ser tomada pelos ministros da mais alta Corte do país passará a valer para todas as outras sobre o tema que tramitem nos vários tribunais.

A ideia de dar a essas ações o instrumento de repercussão geral se deu porque este ano, de janeiro a julho, o Ministério da Saúde respondeu a 16.301 ações que reclamam apenas o fornecimento desses casos específicos – remédios e tratamentos médicos não validados pela Anvisa. E o número da ações sobre essas circunstâncias, neste primeiro semestre, chegou a ser maior que o observado durante todo o ano passado (14.940)

A parte referente aos remédios é apenas um item deste problema que afeta não apenas os pacientes e parentes de pessoas com doenças crônicas e casos tidos como muito sérios, mas também médicos e magistrados.

“É muito complicado e grave. À primeira vista todo mundo tem direito à saúde, a leitos em hospitais e acesso a medicamentos. Mas quando o juiz recebe o pedido para a compra de um remédio de R$ 16 mil, por exemplo, para um paciente com câncer em estado terminal, vai ter que avaliar o número de caixas que terá de liberar e muitas vezes percebe que o valor a ser gasto com esta pessoa, no total, pelo poder público, será semelhante ao orçamento para todo o setor de saúde pública de um dos municípios mais pobres do país”, observou o pesquisador em saúde pública Adriano Rodrigues, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

“Ele tem de pensar, fica nas mãos dele decidir se ajuda a melhorar o final da vida desta pessoa ou nega o pedido para que os recursos possam ajudar a vacinar crianças e ser usados em outras iniciativas que vão salvar muito mais vidas. Isso é cruel para um julgador”, afirmou, acrescentando que o quadro leva muitos magistrados a se encontrarem no limite entre decidir sobre a vida ou morte de uma pessoa.

Desconforto nos julgamentos

Muitas vezes, apesar de várias parcerias já terem sido feitas, existe uma carência de peritos na área para subsidiar os juízes sobre a situação real de um paciente para quem está sendo pleiteado determinado medicamento de alto custo. E se a situação parece ser difícil apenas nos estados, no STF, os ministros demonstraram o mesmo desconforto na última quarta-feira.

O ministro Marco Aurélio de Mello, relator das ações que estavam na pauta, disse que embora seja favorável à obrigação do poder público de fornecer estes remédios, seu parecer é contrário à distribuição dos que não tenham sido registrados pela Anvisa, na maior parte das vezes, mas destacou que “o fornecimento depende da comprovação de necessidade do remédio e da incapacidade do paciente de pagar pelo fármaco”.

O ministro Luiz Roberto Barroso, por sua vez, apresentou entendimento diferente e, diante da dúvida suscitada por vários integrantes do colegiado, ele pediu vista do processo para analisá-lo melhor.

Informações repassadas na sessão pela advogada-geral da União, Grace Mendonça, são de que de 2010 a 2015 o Estado passou a ter um aumento de 727% nos gastos referentes à judicialização. “Esses tipos de liberação terminam impactando nas políticas públicas de saúde”, argumentou.

“Em outras palavras: o poder público não tem competência para oferecer um bom sistema de saúde pública para a população; a população recorre à Justiça; e a Justiça fica perdida, porque nem sempre consegue ser subsidiada por um médico sobre a melhor decisão. E um juiz sabe que, nessas circunstâncias, salvar uma vida, por mais importante que seja, também pode significar evitar que várias outras consigam viver”, disse o pesquisador.

O assunto foi uma das prioridades abordadas pela presidenta do STF, ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, na reunião que ela teve recentemente com os governadores, a quem pediu que listassem os principais objetos reclamados nas ações contra os governos estaduais neste setor.

Independentemente disso, o CNJ, que também passa a ser comandado pela ministra, deu início, quinta-feira (15), a uma parceria com o Conselho Nacional de Saúde (CNS) no sentido de tentar contribuir com o envio de peritos para os tribunais de Justiça, de forma que eles os ajudem no estudo dos laudos médicos observados nestas ações.

A parceria, que tem, ainda, o apoio do Ministério da Saúde, permitirá buscar formas de racionalização desses processos e a realização de reuniões nos estados que levem a medidas menos burocráticas para facilitar procedimentos. “Inauguramos hoje uma relação de diálogo e nos colocamos à disposição para auxiliar no que for possível”, afirmou o presidente do CNS, Ronaldo Santos.

Já o supervisor do Fórum Nacional do Poder Judiciário para a Saúde, o conselheiro do CNJ Arnaldo Hossepian, disse que o órgão quer estruturar o sistema para corrigir distorções, inclusive com a criação, no início do mês, de comitês estaduais de Saúde junto ao Judiciário nos estados. Segundo ele, também estão sendo estudadas formas de especialização de comarcas junto ao tema.

Problema social

Outra iniciativa apontada pelo conselheiro é a criação de um banco de dados com informações técnicas para auxiliar magistrados nas decisões. “O CNJ não interfere no exercício da jurisdição, nem na forma como o juiz vai decidir sobre cada caso. O que queremos conferir aos julgadores é a possibilidade de, em tempo rápido, receberem pareceres técnicos sobre essas ações para que possam deliberar com mais celeridade e adequadamente”, afirmou Hossepian.

Para a juíza federal Rosângela Borges, de Goiás, o problema não é de hoje e precisa de atuação eficaz, por parte do Judiciário, de uma vez por todas, com imposições ao poder público para que cumpra seu papel. “São processos que não dizem respeito apenas aos jurisdicionados. Também representam um problema social, tanto para os juízes, como para os jurisdicionados e os elaboradores de políticas públicas”, disse.

A polêmica principal se dá porque, segundo a magistrada, até há bem pouco tempo as decisões eram tomadas quase que “no escuro”. “A tendência de todos os juízes do país é dar a decisão favorável ao cidadão, porque é difícil detectar um caso de fraude se não tivermos informações disponíveis e tendo uma vida em jogo. E muitas vezes, quando os próprios demandantes judiciais incorrem em um erro de avaliação sobre a necessidade de um procedimento, o fazem até mesmo de forma inconsciente em prol da sua saúde ou dos seus familiares, querendo mais bem-estar para estes”, disse Rosângela.

De acordo com os dados do CNJ (que ainda não tem o balanço referente ao ano de 2015), no ano de 2014 os estados campeões em número de ações de cidadãos reivindicando serviços públicos de saúde na Justiça foram Pernambuco, São Paulo, Santa Catarina, Pará e Rio Grande do Sul. A ministra Cármen Lúcia ficou de chamar os governadores para uma segunda conversa sobre o tema, assim que tiver um diagnóstico mais preciso sobre os gargalos observados nas ações em cada estado voltadas para este setor.