Joaquim Barbosa: a doença e os desafetos

Polêmica sobre licença médica revela motivos pelos quais o primeiro negro a assumir posto de ministro do STF incomoda tanta gente

Prestes a completar 56 anos, em outubro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa foi recentemente um dos principais personagens da crônica brasileira. Não pelo que tenha dito ou feito no plenário da mais alta corte do país, mas pelo que deixou de fazer, movido pela licença médica que tirou para tratar de uma lombalgia. A discussão sobre o comportamento do ministro, entretanto, mais do que envolver questões sobre produtividade do Judiciário, revelou o tamanho e a força dos desafetos que ele colecionou em sete anos de tribunal. E o quanto os seus votos e debates incomodaram ao longo desse período.

Dono de biografia respeitável, tanto pelas posições que adotou no julgamento de temas polêmicos como também pelas brigas que já travou, em meio ao colegiado do STF, Barbosa provavelmente não esperava passar pelo olho do furacão que varre sua vida. “Isso é armação de pessoas que não gostam de mim”, teria desabafado para pessoas próximas, depois de o jornal O Estado de S. Paulo publicar matéria com fotos suas em um bar de Brasília, em pleno período de afastamento das atividades. Por causa das sucessivas licenças para tratar da saúde, o flagra do ministro foi criticado por colegas, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e representantes do Executivo, e chegou a ser campeão de comentários das redes sociais na internet com depreciações E também mensagens de apoio.

De 2008 até hoje, Barbosa passou por sucessivas licenças, num total de 112 dias sem trabalhar. Segundo informações do STF, existem 13.193 processos em seu gabinete. Em março, o ministro foi citado pela entidade Transparência Brasil como um dos menos produtivos do tribunal – embora o levantamento da entidade tenha deixado claro que era por motivo de saúde. Como se não bastasse, em novembro passado ele renunciou ao cargo de vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – órgão que viria a presidir logo depois, caso tivesse permanecido. Alegou não ter condições físicas.

O seu recente anúncio de nova licença, para continuar o tratamento, bastou para acirrar os ânimos dos colegas. Ainda mais porque, com a aposentadoria do ministro Eros Grau, o STF ficou sem quórum para a realização de julgamentos importantes, como o seguimento do caso do mensalão­ e o processo que trata da incidência da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) nas vendas feitas pelas empresas no exterior.

O problema de saúde de Joaquim Barbosa é sério e o obrigou a participar de julgamentos históricos no plenário do Supremo em pé durante todo o tempo, em razão de fortes dores. Também o obriga a frequentar consultórios médicos diversos. Mas o que se discutiu no país sobre o episódio tomou duas direções. Em primeiro lugar, os motivos pelos quais um ministro que pode frequentar bares não consegue comparecer ao gabinete de trabalho ou às sessões do tribunal. Em segundo lugar, chamou mais uma vez a atenção para a personalidade de Barbosa, conhecido pelo temperamento de não levar desaforos para casa.

Mineiro de Paracatu, o ministro fez uma carreira digna de pessoas de condições humildes que se saíram vitoriosas pelo próprio esforço. Chegou à capital aos 16 anos e conseguiu seu primeiro emprego, como gráfico, no jornal Correio Braziliense. Logo após concluir o curso de Direito pela Universidade de Brasília (UnB), fez pós-graduação­, mestrado, doutorado e especializou-se em Direito Público Comparado, com passagens pelas universidades de Columbia (Estados Unidos) e Paris.  Foi oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores e promotor público, até ser indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, para o STF.

Credibilidade

Entre as várias brigas em que se envolveu com colegas, Barbosa disse para o então presidente do STF, Gilmar Mendes, que ele precisava ir às ruas ouvir o que a população pensava, porque estaria “tirando a credibilidade do Judiciário”. Também se indispôs com os ministros Marco Aurélio Mello e Eros Grau. A este chamou publicamente de “burro” e “velho caquético”, por ter concedido habeas corpus para Humberto Braz, envolvido no caso de suborno a policiais federais na operação que prendeu o banqueiro Daniel Dantas. E completou, dizendo: “Todos aqui estão achando o mesmo do senhor, mas só eu tenho coragem de lhe dizer”.

No âmbito do PT, decepcionou os que achavam que poderia afrouxar a guarda durante a apreciação do processo do chamado mensalão, do qual foi relator. Na época, produziu uma peça jurídica que transformou 40 denunciados em réus.

Junto ao empresariado, órgãos públicos e a alguns setores mais conservadores da sociedade, é visto com cautela por vários motivos. Da parte dos conservadores, principalmente, por ser favorável à legalização do aborto. Da parte dos empresários, por defender que, quando uma empresa privada assume um serviço público mediante concessão, deveriam ser aplicadas a esta regras da responsabilidade objetiva, como se tal empresa fosse o próprio Estado. É ainda da opinião de que a competência para julgamentos de processos referentes a trabalho escravo deve ser da Justiça Federal.

Perante advogados, é conhecido por não gostar dos pedidos para apressar julgamentos e por criticar, constantemente, o que define como “elite do Direito”, formada pelos que vivem nos tribunais para pedir preferência nos processos em que atuam. Também é contra o poder do Ministério Público (MP) de arquivar e de presidir inquéritos policiais.

Junto aos políticos, aceitou as denúncias do MP contra o ex-governador de Minas Gerais e atual senador Eduardo Azeredo (PSDB), por peculato. E foi responsável pela reabertura do processo contra o então deputado federal e ex-governador da Paraíba Ronaldo Cunha Lima (PMDB), por tentativa de homicídio. O ex-governador preferiu renunciar ao mandato para ser julgado como réu comum, como forma de evitar um julgamento por parte do Supremo. No plenário do STF, propriamente, votou a favor da pesquisa com células-tronco, ao aborto de fetos com anencefalia e pelo direito dos servidores públicos fazerem greve.

Em razão desses votos, tem sido chamado de “contraditório” e “arrogante”. Mas não teme embates, e ainda cultiva amigos leais e afetuosos. “Quando o ministro gosta de alguém, gosta de verdade”, conta um servidor do tribunal, que evitou se identificar. “Ele é sincero e impositivo em suas palavras e, por isso mesmo, corretíssimo em tudo o que faz”, complementa um advogado que constantemente acompanha as sessões.

Barbosa já avisou: diante do imbróglio que sua ausência provocou, vai retornar ao trabalho. Mas em caráter provisório, para realização de julgamentos mais urgentes. Depois se submeterá a perícia e pedirá nova licença. Afirma que precisa ficar bom para poder usar toda a energia de que dispõe e ajudar o país. Ratifica, assim, a declaração bombástica que deu, anos atrás. Questionado pelo fato de ter sido o primeiro negro nomeado para o STF em muitas décadas, disse que quem, no tribunal, por acaso achava que encontraria nele “a figura de um negro submisso”, se enganou. Será que alguém mais tem dúvidas?