Nada é por acaso

No Dia do Exército, ‘coincidência’ provoca crise militar e general Gonçalves Dias deixa o GSI

No Brasil, desde o fim da ditadura, o que faltou e continua faltando para pôr fim ao eterno sussurrar golpista nos quartéis é a punição

Ricardo Stuckert/PR
Ricardo Stuckert/PR
Em cerimônia pelo 375 anos do Exército comandante Tomás Paiva afirmou que a corporação é uma “instituição de Estado"

São Paulo – Líderes do governo no Congresso e aliados do presidente Luiz Inácio Lula da Silva discutiram durante a tarde estratégias para superar a crise após a divulgação de imagens do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Gonçalves Dias, circulando no Palácio do Planalto no 8 de janeiro, após a invasão de golpistas. Não faltaram boatos em Brasília durante o dia, até que se confirmou um deles: o de que G. Dias, como é conhecido, renunciaria. O que de fato ocorreu após reunião do oficial com o presidente Lula.

O secretário-executivo do Ministério da Justiça, Ricardo Capelli, será o ministro interino do GSI. Auxiliar de confiança do ministro da Justiça, Flávio Dino, Capelli foi interventor de segurança pública do Distrito Federal após os atos golpistas de 8 de janeiro. “Fez trabalho muito importante”, afirmou o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta.

Capelli, por sua vez, já deu seu recado no Twitter sobre a operação midiática de hoje:

Esperado para falar na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, o general não compareceu. Enviou um ofício do GSI assinado pelo chefe de gabinete Marco Aurélio de Andrade Lima, no qual anexou um atestado médico segundo o qual estaria com um “quadro clínico agudo com necessidade de medicação e observação”.

O fato de o general que ainda chefiava o GSI ser classificado como de confiança do presidente Lula não quer dizer muita coisa na fauna militar, sobretudo a brasileira. É o que pensa o historiador Manuel Domingos Neto, especialista em questões militares. Para ele, além de a crise não ser simples, ela poderia mostrar, mais uma vez, que todo oficial “é fiel acima de tudo à corporação, e isso faz parte do ethos militar” (ethos significa costume, ética de um grupo).

Dia do Exército

Domingos diz acreditar que G. Dias é leal a Lula, mas “por mais honrado que tenha sido com o presidente”, ele não iria se contrapor às “tendências predominantes da corporação” por ocasião do 8 de janeiro, que na época eram “orientações golpistas”. “Corporação tem vida própria, tem autonomia, se não tivesse não seria corporação.”

De todo modo, o vídeo da CNN teve edição e roteiro, não permite nenhuma conclusão e, nesse sentido, a melhor maneira de o agora ex-chefe do GSI explicar as circunstâncias é estando fora do cargo de ministro.

O aparecimento das imagens acontece em um momento simbólico, exatamente no Dia do Exército, comemorado hoje. Enquanto o governo tenta a duras penas reduzir danos que vêm de anos de animosidade e após o 8 de janeiro, o episódio de G. Dias complica a situação novamente, observa o historiador.

No Brasil, desde o fim da ditadura (1964-1985), o que faltou e continua faltando para pôr fim ao eterno sussurrar golpista nos quartéis é a punição. “Uma disposição de enquadrar tinha que começar pelo general (Eduardo) Villas-Boas”, acredita Domingos Neto. “Mas isso parece impensável.”

O atual comandante do Exército, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, era chefe de gabinete do próprio Villas Boas quando este – comandante do Exército de 2015 a 2019 – postou tuítes manifestando-se contra eventual habeas corpus a Lula pelo STF em 2018, o que não ocorreu e Lula foi preso.

“Instituição de Estado”

Em cerimônia pelo 375 anos do Exército hoje, ao lado de Lula, o comandante Tomás Paiva – em novo discurso legalista – afirmou que a corporação é uma “instituição de Estado, apolítica, apartidária, apartidária e coesa, integrada à sociedade e em permanente estado de prontidão”. Ele fez discurso semelhante dias antes de ser nomeado para o lugar do general Júlio César de Arruda.

Participaram da cerimônia o ministro José Múcio (Defesa), o comandante da Aeronáutica, Marcelo Damasceno, e o mesmo ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas.

“Todo mundo bate palmas para o discurso legalista de Tomás Paiva, e eu também bato, mas por outro lado há uma necessidade de punição, e o Exército não pode fugir a isso”, defende Domingos Neto. Ele cita o exemplo do general André Luiz Ribeiro Campos Allão, comandante da 10ª Região Militar do Exército em Fortaleza (CE), que em vídeo que circulou nas redes sociais no final de novembro defendia os golpistas acampados contra a eleição de Lula.

Apesar de ter a tradição de punir “o mínimo possível”, na expressão de Domingos Neto, algumas cabeças “vão rolar”. É o caso dos oficiais “que se encontram em situação de acusação comprovada”, como o próprio Gonçalves Dias. Ou os que discursaram em favor dos golpistas, como campos Campos Allão em Fortaleza.

CPI no DF

Em Brasília, o deputado distrital Chico Vigilante (PT), presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Atos Antidemocráticos na Câmara Legislativa do DF, divulgou nota na qual afirma que a comissão vai convocar os generais Gonçalves Dias, Augusto Heleno, se antecessor no GSI, e o general Gustavo Henrique Dutra, então comandante militar do Planalto no 8 de janeiro.

O deputado distrital afirmou querer o acesso a todas as fitas das 22 câmeras instaladas no Palácio do Planalto. “Nós vamos analisá-las”, disse no Twitter.