Contra os 'comunas'

Nova marcha da família quer ‘uma intervenção’, não um governo militar

Centenas de manifestantes ocuparam ruas do centro de São Paulo durante quatro horas, contra 'a foice e o martelo' e a favor do 'verde e amarelo'. Quatro pessoas foram detidas na Praça da Sé

Nego Valente: a marcha não quer governo militar, só uma intervenção; e depois eleições, sem urna eletrônica <span>(Lucas Duarte de Souza/RBA)</span>Dupla de atores tentou descontrair o clima sisudo da marcha pró-golpe. Acabaram levando sopapos depois <span>(Lucas Duarte de Souza/RBA)</span>Grupo estende faixa invertida diante de manifestantes da marcha da família <span>(Lucas Duarte de Souza/RBA)</span>Manifestante enaltece, entre outros, apresentadora do SBT que defendeu linchadores <span>(Lucas Duarte de Souza/RBA)</span>Ativista da marcha da família carrega imagem de santa durante caminhada no centro de SP <span>(Lucas Duarte de Souza/RBA)</span>Faixa, no momento em que chega na Sé, pega pesado contra Dilma: 'comunista' <span>(Lucas Duarte de Souza/RBA)</span>

São Paulo – Diante das arcadas do Largo São Francisco, que abriga a Faculdade de Direito da USP, uma jovem vê a Marcha da Família se aproximando e começa a gritar: “Liberdade! Abaixo a ditadura!”. Algumas pessoas furam o cordão policial, deixam a passeata e tentam agredi-la, mas são contidas por outros manifestantes.

Um senhor mais irritado atira panfletos em direção à moça, nos quais se lê que “o Brasil pede socorro”. Era a reedição, 50 anos depois, da Marcha da Família, reunindo aproximadamente 500 pessoas – a Polícia Militar chegou a falar em até 1.000 –, durante quatro horas, cortando a região central de São Paulo, da praça da República até a praça da Sé.

O ato teve muitos apelos por uma “intervenção militar, constitucional”, críticas e ofensas à presidenta Dilma Rousseff, ataques ao comunismo que estaria ameaçando o país, imagem de Nossa Senhora à frente da caminhada e até a execução de Eu te Amo, meu Brasil, música da dupla Dom & Ravel, que em 1970 se tornou conhecida com a gravação de Os Incríveis e virou símbolo do ufanismo do governo da época – o país era presidido pelo general Emílio Garrastazu Médici. A manifestação começou às 14h30 e terminou por volta de 19h, com algumas brigas, muitos bate-bocas e quatro prisões.

As faixas e frases iam das previsíveis às mais agressivas: “Comunismo é morte”, “Assaltante de banco não pode representar a família brasileira”, “O Brasil não é vermelho”, “As Forças Armadas estão esperando o clamor popular”, “O governo é cúmplice do terrorismo internacional”, “Dilma e Lula, vão pra Cuba que os pariu”, “Querem expulsar Deus do Brasil”, “A melhor liberdade é quando você se livra do que te faz mal”. Uma manifestante, com a bandeira brasileira, portava uma placa na qual se apresentava: “Sou reaça contra o que não presta”.

Durante todo o percurso, os dois carros de som, batizados por alguns de “caveirões”, pelo aspecto, tocavam repetidamente o Hino Nacional e o Hino da Independência. Um homem toca um clarim, como que chamando a tropa. “Aqui estão as pessoas de bem”, repetiam os oradores.

Em um trecho da caminhada, já na rua Xavier de Toledo, perto do Teatro Municipal, manifestantes teriam confundido jovens que iam para o show do grupo Mettalica, no estádio do Morumbi, com black blocs. O grupo que passava no sentido contrário foi hostilizado, mas conseguiu chegar até a estação Anhangabaú do Metrô.

Patriotas

Uma das organizadoras da marcha, Cristina Peviani, saúda os presentes que chegam à praça da República, ponto de partida: “Obrigado, patriotas!”. Em seguida, saúda o movimento de março de 1964. “Os militares não deixaram nossa pátria ser cubanizada. Dona Dilma não quer que eles comemorem, mas nós podemos.” Chama os policiais de heróis e avisa: “Entendam os comunas como quiserem. Esta é a primeira marcha. Temos de tirar a rua deles”.

As críticas mais comuns são contra a “corrupção generalizada” e o “descaso” das autoridades com os serviços públicos. Também se ouvem ataques à Comissão Nacional da Verdade e ao PT (versão atual do perigo vermelho), elogios aqui e ali ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, e lamentos contra a “perda de valores” da sociedade atual. A composição é diversa. Há vários jovens e pessoas de mais idade, como um senhor apresentado como “ex-combatente, de 101 anos”, que diz ser um homem revoltado: “Nunca vi uma desgraça tão grande no nosso país depois que as Forças Armadas deixaram o poder.”

Estão ali também ali alguns católicos, pessoas comuns, curiosos, e também podem ser vistos monarquistas e skinheads. Com manifestações gerais de que “naquele tempo” a vida era melhor: “Cresci com segurança”, diz, por exemplo, a empresária Ana Prudente, que se cobria, como vários, com uma bandeira brasileira.

Havia um efetivo de 150 policiais militares, segundo o major Genivaldo. Mas a manifestação contou também com esquema próprio de segurança, formado por jovens que se identificavam com fitas no braço, alguns com ataduras no punho. “Nosso grupo é o Brasil. Formamos grupos para nos proteger”, explica Moisés, que dá apenas o primeiro nome e se apresenta como vendedor de software e morador do Butantã, na zona oeste, cabelos curtos, crucifixo no pescoço e voz firme. “O grupo é formado para evitar que a marcha perca seu propósito.”

Ele afirma que a violência não é um recurso, mas torna-se admissível como autodefesa. “É preciso que o povo de bem não confunda amor à paz com covardia. Vamos nos defender como determina a Constituição.” Quando alguém fala em tortura em tempos de ditadura, Moisés diz que ninguém pode apoiar de barbárie, mas defende o movimento de 1964. “O Exército defendeu totalmente o interesse do povo. Foi uma revolução completamente gloriosa.”

Para o jovem, a revolução hoje deve ser feita com ideias. “Não adianta o gigante acordar se a consciência dormir.” Segundo ele, nenhum partido representa o povo brasileiro. E o país passou por uma “desconstrução da educação pela esquerda”.

Bandidos

No carro de som, um manifestante vindo do Rio de Janeiro afirma: “Sou heterossexual, muito bem casado e tenho orgulho disso”. A seu lado, outro participante informa: “O comunismo matou milhões de pessoas. O regime militar matou só 400 bandidos”.

Alguns princípios de tumulto ocorreram antes da saída da marcha, e pelo menos dois repórteres fotográficos foram agredidos. Um deles, Leonardo Martins, free-lancer, sofreu um corte na testa. Mais tarde, um homem, identificado como Valter, administrador de empresas, foi tido como “petista” e teve de se abrigar na Secretaria da Educação. “Desgraçado, maldito, escória, lixo”, gritava um manifestante que usava uma camisa com os seguintes dizeres na parte da frente: “Aos inimigos da Igreja…”, e atrás: “As portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Trecho do Evangelho segundo São Mateus.

Dali a instantes, o engenheiro Otto Colominas conta que houve um mal-entendido. “Ele (Valter) é apoiador da marcha. Otto também considera legítima a manifestação, diante da “desagregação das instituições” pela qual estaria passando o Brasil. E cita o artigo 142 da Constituição, sobre o papel das Forças Armadas (destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes, da lei e da ordem).

Outro organizador do ato, conhecido como Nego Valente (Levindo Rodrigues de Medeiros Neto), 51 anos, ex-caminhoneiro que se queixa por ter o pedido de aposentadoria rejeitado, tenta esclarecer: “A marcha não está querendo nem pregando um governo militar”. A ideia é que os militares façam uma intervenção, para quem sejam organizadas novas eleições – sem urnas eletrônicas, cuja lisura os integrantes da marcha contestam.

Mas e se acontecer como em 1964, quando os militares entraram para “arrumar a casa” e não devolveram o poder aos civis? “Da mesma forma que estamos aqui hoje, vamos estar para evitar ditadura”, garante Nego Valente, envolto em uma bandeira do estado de São Paulo. Qualquer partido poderá concorrer, se não for banido. “Aí vai depender do Supremo Tribunal Federal, das Forças Armadas… Se não, que vença o melhor”, acrescenta o ex-candidato a vereador pelo PMN em Osasco, na região metropolitana de São Paulo.

Ele considera o movimento de 1964 algo positivo para o Brasil, chamando de “assaltantes de banco” os opositores. Liga Dilma a vários grupos atuantes durante a ditadura: Polop, VPR, ALN, Colina, MRT. E considera que os black blocs “têm ligação direta” com a Presidência da República.

Segundo Nego Valente, que diz representar Osasco, há um grupo de aproximadamente 20 pessoas que tem se reunido para discutir as manifestações e a situação do país. Nele estão jovens, pessoas de mais idade e formadores de opinião nas redes, que também fazem panfletagens em portas de faculdade. Rejeita o rótulo que organizações de esquerda dão a eles: “Não somos fascistas. Estamos tentando representar a família brasileira”. E informa que a próxima passeata, ainda sem data, será contra o sistema de votação eletrônico.

Primeira de muitas

São quase 16h30. Duas horas depois do início, a marcha se prepara sair da Praça da República em direção a outro marco do centro de São Paulo, a Sé. Perto do carro de som, um dos organizadores mais conhecidos, Bruno Toscano Franco, ataca: “Esse governo pilantra que está aí foi o que mais massificou o preconceito, rico contra pobre, heterossexual contra homossexual, preto contra branco”. Ele confirma que outras passeatas vão acontecer. “Esta é a primeira de muitas”.

A marcha sai, entra na Avenida São Luís aos gritos de “Deus, pátria, família”, “Não é mole não, o comunismo é a desgraça da nação” e “Verde e amarelo, sem foice nem martelo”. Vira à esquerda na Rua Xavier de Toledo, onde dois rapazes abrem uma enorme faixa preta na qual se lê, de trás para frente: “Esta imagem está invertida”. Seriam atores. Logo, um grupo avança e expulsa a dupla, pouco antes da passagem do grupo de jovens que ia para o show de rock.

Outra dupla apareceria logo adiante. Eram homens vestidos de empregadas domésticas – em uma manifestação improvisada, conforme explicariam depois –, com placas: “Marchinha quase de Família” e “Marcha praticamente de Família”. Alguns integrantes da passeata não acham graça e avançam contra eles, que levam chutes e perdem as placas.

Às 17h30, a marcha chega à praça da Sé. Ali vão se registrar algumas confusões. Manifestantes perseguem uma jovem, que se abriga numa farmácia – “Ela pichou de vermelho nossa placa”, conta um deles. Policiais ficam na porta. Um dos organizadores, chamado de Ricardo, se desentende com um jovem, e os dois começam a brigar. No final, a moça e o rapaz vão presos. Outros dois seriam detidos, por tentativa de agressão.

Quase 19h, a manifestação se dispersa, mas ainda há um boato de que um grupo estaria chegando para um confronto, que acabou não acontecendo. Houve ainda um rápido desentendimento, logo controlado, dentro da estação Sé do Metrô. Cinquenta anos depois, termina a marcha versão 2014.