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Entenda por que entidades de policiais rejeitam PL do terrorismo que tramita na Câmara

Organizações veem invasão de atribuições do segmento, bem como excesso de concentração de poder em uma única autoridade

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Delegados da Polícia Federal estão entre os profissionais da área de segurança que têm reservas ao Projeto de Lei (PL) 1.595/2019

Brasil de Fato – Já criticada pelo Ministério Público Federal (MPF), por especialistas do campo progressista e segmentos que atuam na defesa dos direitos humanos, a proposta do governo Bolsonaro que endurece a Lei Antiterrorismo enfrenta resistências também entre entidades que reúnem profissionais da segurança pública. Juntas, dez entidades do ramo apontam preocupações com aspectos do Projeto de Lei (PL) 1.595/2019, o ‘PL do terrorismo’, que consideram inconstitucionais e invadem competências de órgãos da área de segurança.

Defendido por deputados bolsonaristas com perfil ligado à chamada “bancada da bala”, o PL, além de endurecer a Lei Antiterrorismo (nº 13.260/2016), estende as condutas que podem ser caracterizadas como prática de terrorismo e fixa ações a serem adotadas pelo Estado diante de casos que sejam enquadrados nesse conceito.

Entre as previsões do texto, que tramita hoje numa comissão especial da Câmara dos Deputados, está a de criação da chamada “autoridade nacional contraterrorista”. A figura seria a responsável pela condução da Política Nacional Contraterrorista (PNC), também prevista na proposta, e lideraria os trabalhos na área.  

O crime de terrorismo atualmente está sob competência de investigação da Polícia Federal, por meio da Diretoria de Inteligência Policial do órgão, que tem unidade central definida em lei. O presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), Edvandir Paiva, vê com preocupação a ideia de concentrar os trabalhos da área numa autoridade nacional.

“Nós não vemos a menor necessidade de uma autoridade fora dessa estrutura pra regular a área de combate ao terrorismo. Já temos órgão que faz isso, e é um órgão de Estado, o que é o mais importante, porque essa política antiterrorismo é uma política de Estado. Ela não deve ser uma política de governo”, afirma o dirigente, ao destacar que a área segue diretrizes específicas e se referencia em modelos internacionais.

Na lista das organizações que têm reservas ao PL 1.595 estão, além da ADPF, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol-BR), a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol) e o Conselho Nacional de Entidades Representativas dos Profissionais do Sistema Socioeducativo (Conasse).

A esse rol se somam ainda a Federação Nacional dos Oficiais Militares Estaduais (Feneme), a Federação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (Fenadepol), a Federação Sindical Nacional de Servidores Penitenciários e Policiais Penais (Fenasppen), Federação Nacional de Sindicatos de Guardas Municipais do Brasil (Fenarguardas), a Federação Nacional dos Trabalhadores do Sistema Socioeducativo (Fenasse) e a Associação Brasileira de Criminalística (ABC).

Tais categorias apontam que, ao submeter mais de 56 mil policiais às ordens diretas do chefe do Executivo, a proposição ignora a forma como é constituído o sistema de segurança pública do país. “Ela acaba sobrepondo, a esse sistema, uma autoridade discricionariamente designada pelo presidente da República com funções e atribuições de órgãos públicos. Olha a gravidade disso”, exclama o presidente da Adepol-BR, Rodolfo Laterza.

“Em segundo lugar, por ser uma [proposta de] lei ordinária e deter atribuições que são definidas na Constituição em relação à Polícia Rodoviária Federal, à Policia Civil e à Polícia Militar, ela acaba conflitando as atribuições desses órgãos com essa autoridade nacional, que concentraria todas as funções desses órgãos nela. É algo inconstitucional e sem qualquer fundamento lógico”, observa Laterza.

Definições vagas

As entidades que aglutinam profissionais das polícias e de outras áreas de segurança pública temem ainda que o combate ao terrorismo seja politizado, inclusive pelo fato de o PL 1595 trazer definições não específicas para as condutas a serem enquadradas no gênero.

O mesmo apontamento vem sendo feito por diferentes entidades de direitos humanos que se debruçam sobre o tema e acusam a proposta de abrir caminho para armadilhas políticas. É o caso das ONGs Terra de Direitos e Artigo 19, por exemplo. Trocando em miúdos, o receio do segmento é o de criminalização de eventuais adversários ideológicos por governos de plantão.

“Há a proposta de que o PL estabeleça novos crimes de terrorismo e nós achamos que, se tivermos que fazer uma atualização sobre o que é terrorismo ou deixa de ser, temos que seguir as convenções internacionais, que são baseadas numa experiência mais forte que a nossa nessa área. Não podemos deixar definições abertas que possam abarcar ações que não sejam de terrorismo apenas por vontade de quem está no poder”, argumenta Edvandir Paiva.

O presidente da Adepol-BR afirma que a proposta que está em discussão na Câmara “tem sérios problemas de constitucionalidade” e de falta de adequação às questões previstas no Sistema Único de Segurança Pública (Susp), previsto na Lei 13.675/2018.

Polícia Federal responde pelo combate a ações de terrorismo por meio da Diretoria de Inteligência Policial do órgão / Polícia Federal/Arquivo

“Pra piorar, ela define como modalidades criminosas situações sequer previstas no nosso ordenamento jurídico penal, como aparência de ato de terrorismo”, exemplifica Laterza, ao criticar o caráter subjetivo e lacônico de determinados trechos do PL.  

Ele aponta como ilustração o artigo 1º do PL, segundo o qual a nova lei “será aplicada também para prevenir e reprimir a execução de ato que, embora não tipificado como crime de terrorismo, seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave”.

O mesmo trecho prevê também, para esse tipo de enquadramento, ato que “aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil”. Para o presidente da Adepol, organização que congrega 30 unidades policiais, o dispositivo precisaria ser suprimido por inteiro por violar o princípio de que não há crime sem conduta.

“Você tem que ter uma conduta grave, definida pela legislação que afete materialmente, ou seja, de forma substancial, o interesse, o valor assim definido como relevante pra sociedade pra você poder criminalizar”, acrescenta Laterza, ao afirmar que a falta de um bem jurídico definido criminaliza a conduta com base nas aparências.

O delegado sublinha que essa perspectiva adotada pelo PL é inconstitucional e viola preceitos fundamentais adotados na área penal.

“Você não pode, no direito penal, punir a cogitação ou a esfera do pensamento. É algo que é impossível na estrutura componente de um crime. Em qualquer crime, a punibilidade se dá a partir do início da execução do fato, e não pela cogitação e o pensamento”.  

Ex-líder do governo na Câmara e atual líder do PSL, Major Vitor Hugo (GO) é o autor do PL 1595/2019, cuja essência foi cunhada em 2016 pelo então deputado Jair Bolsonaro / Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Relator

Os apontamentos críticos feitos pelas entidades de profissionais da segurança foram encaminhados ao relator do PL, deputado Sanderson (PSL-RS), por meio de uma proposta de substitutivo.

O parlamentar ainda não apresentou o parecer sobre o projeto e deve protocolar o documento em setembro, segundo as previsões manifestadas durante as sessões de debate da comissão especial que estuda a medida.

“Nós estamos ouvindo todos e anotando todas as sugestões. O relatório será apresentado com base nas sugestões que foram apresentadas”, disse o pesselista durante audiência pública com representantes do segmento policial na última sexta (27), na Câmara.

Um dos vice-líderes do governo na Casa, Sanderson também tem rebatido as críticas dos opositores do PL. Ele nega que a proposta tenha por objetivo a criminalização política de adversários da gestão.  

“Queremos apresentar uma legislação para proteger a sociedade brasileira, jamais para aviltá-la, jamais para retirar qualquer tipo de direito ou garantia de quem quer que seja. Ao contrario, é pra aprimorar, dando condições de salvaguarda à sociedade e ao país”.

Histórico

A proposta hoje em debate no Legislativo foi apresentada originalmente por Jair Bolsonaro por meio do PL 5825, de 2016, quando o político ainda era deputado federal. A medida não chegou a ser votada na Câmara e foi arquivada em janeiro de 2019.

Na sequência, o teor do projeto foi recuperado pelo deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), por intermédio do PL 1595/19, que estava parado desde aquele ano, mas agora figura entre as prioridades dos parlamentares ultraconservadores da Câmara, por isso pode ir à votação ainda em setembro.

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