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Setor privado deve assumir responsabilidades na violação de direitos humanos

Governos e órgãos financiadores também são atores importantes no combate ao trabalho escravo e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Assunto foi debatido em evento ligado à ONU

Arquivo EBC

Com a comunidade do entorno ou na cadeia produtiva, empresas devem agir para não violar direitos

São Paulo – Empresas e corporações não podem mais ignorar suas responsabilidades com os impactos causados por suas atividades aos direitos humanos, tanto na população no entorno dos empreendimentos quanto na cadeia do próprio negócio. Essa foi a principal conclusão do painel Direitos Humanos: Respeitar, Proteger e Remediar, ocorrido hoje (10), em São Paulo, no âmbito do Fórum Pacto Global.

“Responsabilidade social não é de graça, custa dinheiro agir corretamente. Ainda tem empresa que acha que responsabilidade social é doar cesta básica, dar uniforme de futebol pro time do bairro, promover churrasco, mas não é nada disso”, afirmou o jornalista Leonardo Sakamoto, diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.

Sakamoto lembrou que desde 1995, cerca de 50 mil pessoas foram resgatadas de situações análogas ao trabalho escravo no Brasil, quase todas graças às equipes do Ministério Público do Trabalho (MPT), Polícia Federal e Ministério do Trabalho em iniciativas de checagem de denúncias. A ação de tais órgãos tem feito a Organização Internacional do Trabalho (OIT) considerar o Brasil um exemplo mundial no combate desse tipo de crime. Uma deferência que talvez fosse melhor não ter, ponderou Sakamoto.

Criada em 2003, a Lista Suja foi o principal instrumento a pressionar as empresas a terem cuidado nas suas relações trabalhistas e de seus fornecedores. Ter seu nome exposto na Lista Suja das empresas flagradas com mão-de-obra escrava se tornou um temor. “A criação da Lista Suja fez as empresas olharem para o problema e também para fazer negócios. As ações das empresas caiam quando entravam na lista, pautando a economia”, explicou o diretor da Repórter Brasil.

Em 2014, porém, a divulgação da Lista Suja foi suspensa no Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão liminar do ministro Ricardo Lewandowski, até que fosse julgada a ação de inconstitucionalidade da medida apresentada pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). Em maio deste ano, a ministra Cármen Lúcia revogou a medida cautelar que impedia a divulgação da lista, mas até o momento o Ministério do Trabalho ainda não publicou uma nova relação. “Sabemos que há romarias de empresas indo no Ministério do Trabalho pedindo para não publicar”, afirmou Sakamoto.

Grandes empreendimentos e violência sexual

Pode ser uma obra de infraestrutura, de mobilidade urbana, uma nova indústria ou um confortável resort. O fato é que grande obras e empreendimentos, para além do potencial econômico, também causam impactos negativos na população do entorno, principalmente crianças e adolescentes levadas à situação da exploração sexual. Foi o que afirmou, em painel, a gerente de Programas e Relações Empresariais da ONG Childhood Brasil, Eva Dengler, especializada no enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Eva apresentou os dados da pesquisa “Os homens por trás das grandes obras do Brasil”, realizada pela Childhood Brasil para traçar o perfil e o contexto de vida e trabalho dos profissionais que atuam na construção de obras importantes pelo Brasil.

Os dados revelam que 97,2% dos trabalhadores afirmaram haver “serviços de prostituição” na proximidade das obras em que atuam; 57,3% relataram presenciar ou já terem presenciado crianças e adolescentes envolvidos nas ofertas de “serviços de prostituição” perto de obras; 66,9% dos trabalhadores afirmaram que seus colegas saem com menores de 18 anos e 25,4% disseram já ter saído, uma ou mais vezes, com crianças e/ou adolescentes.

Segundo a gerente, as razões para que isso ocorra são muitas, como a migração de trabalhadores para a região da obra, a falta de atividades de lazer durante o período do trabalho e alojamentos com pouco (ou mesmo nenhum) convívio familiar. Eva Dengler citou ainda a pré-existência de problemas sociais em localidades já vulneráveis e a fragilidade do Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes, que não dá conta de atender às denúncias de violação.

“As responsabilidades para reverter, ou no mínimo diminuir os impactos dos grandes empreendimentos no entorno da obra, devem ser compartilhadas entre a sociedade, empresas e governos. A prevenção das violações dos direitos de crianças e adolescentes deve estar presente em todas as etapas do projeto, desde a escolha do território até o início das operações do negócio e enquanto ele existir. A empresa deve incorporar a proteção da infância e adolescência na gestão do seu negócio”, afirmou Eva.

Proteção e prevenção

Para lidar com esse grave crime, normalmente silencioso, a gerente da Childhood Brasil apresentou para o público presente no auditório do Masp uma série de ações possíveis de serem executadas.

Por parte das empresas, disse ela, é importante sensibilizar os funcionários sobre a violência sexual e realizar o estudo de impacto do empreendimento, a partir de informações da realidade do município ou da região. No caso de grandes empreendimentos, questões como a composição dos trabalhadores (entre migrantes e moradores locais), a estrutura do alojamento e políticas de lazer e convívio familiar são medidas que podem mudar o impacto da obra na população do entorno.

Na esfera governamental, Eva Dengler afirmou que os governos precisam cumprir o que está previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em todas as etapas do planejamento, financiamento, contratação e licenciamento de um grande empreendimento. “Os órgãos financiadores também são atores importantes desse processo. Podem, por exemplo, estabelecer novos critérios ao avaliar o plano de prevenção e mitigação dos riscos da empresa num novo território.”

Para ela, é preciso ir além e estabelecer um novo marco legal que obrigue governos e empresas a avaliarem o impacto, os riscos e as ocorrências de exploração sexual de crianças e adolescentes em grandes empreendimentos. “Sabemos da importância do Brasil em reativar sua economia e a geração de emprego e renda, mas não podemos fazer isso violando os direitos de crianças e adolescentes”, afirmou.

Ou, como disse Leonardo Sakamoto: “É preciso tirar o escorpião do bolso porque responsabilidade social custa mesmo dinheiro”.

Pacto Global

O Pacto Global é uma iniciativa desenvolvida pelo ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, com o objetivo de mobilizar a comunidade empresarial internacional para a adoção, em suas práticas de negócios, de valores fundamentais e internacionalmente aceitos nas áreas de direitos humanos, relações de trabalho, meio ambiente e combate à corrupção.

Com a participação de agências das Nações Unidas, empresas, sindicatos, organizações não-governamentais, atualmente são mais de 13 mil organizações signatárias do Pacto, articuladas em quase 170 países.