Relatório

Conflitos no campo crescem na Amazônia, por água e contra indígenas

Ao todo, 1.227 conflitos resultaram em 34 assassinatos e 241 ameaças de morte. CPT vê reforma agrária fraca, expansão geográfica e mau funcionamento do Judiciário como principais fatores

Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

“A impunidade provoca mais violência, mais crimes e conflitos”, disse dom Enemésio Lazzaris

Brasília – O Brasil teve um total de 1.277 conflitos no campo em 2013 – 87 a menos que em 2012. Tais confrontos resultaram em 34 assassinatos e 243 agressões em vários estados. Além disso, 143 pessoas foram presas e 241 ameaçadas de morte. Os dados, que traçam uma triste realidade, foram divulgados hoje (28) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), na sede da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em Brasília. A avaliação da entidade é de que não há o que comemorar, apesar de leve redução nos números.

Os coordenadores do trabalho creditaram a tais reduções uma consequência de manifestações, alertas, protestos e denúncias de entidades diversas da sociedade civil feitas ao longo de 2013, fator que foi entendido como uma maior “vigilância social”. Mas os assassinatos em conflitos no campo, em 2013, foram apenas dois a menos que os de 2012. Sem falar que, dentre as principais constatações, destaca-se a de que o grande palco de tais conflitos continua sendo a Amazônia – onde estão concentrados 20 dos 34 assassinatos e 55% dos episódios de violência de qualquer tipo contra populações tradicionais.

Dois pontos, entretanto, chamam a atenção no relatório. O primeiro, o número de conflitos pela água, que teve crescimento de 32% em relação a 2012, reforçando uma tendência que a CPT tem constatado nos últimos anos. O segundo, um maior registro de violências contra indígenas. Conforme os dados apresentados, destas 34 pessoas assassinadas no campo entre janeiro e dezembro do ano passado, 15 são indígenas. Da mesma forma, das 15 vítimas de tentativas de assassinato, 10 pertencem a etnias indígenas. O mesmo acontece com 22 das 241 pessoas ameaçadas de morte.

Para o presidente da CPT, dom Enemésio Lazzaris, os índices, além de não mostrarem melhora da situação, chamam a atenção para falhas observadas no Executivo e no Poder Judiciário. “Se a gente pode dizer alguma coisa, é que a partir da reforma agrária fraca, que funcionou pouco nesses últimos anos, o campo de certo modo foi abandonado. Investe-se bilhões e bilhões no agronegócio e pouco dinheiro na agricultura familiar”, afirmou.

O religioso também criticou, de forma enfática, a morosidade de julgamentos dos responsáveis pelos crimes cometidos no campo. “A impunidade provoca mais violência, mais crimes e conflitos. Pune-se os pequenos, o lavrador, os pequenos infratores, o executor. Mas o mandante, o chefão, não aparece nunca”, acrescentou.

Conflitos por água

Já em relação aos conflitos por água, uma das responsáveis pelo relatório, Maria José Pacheco, explicou que tais confrontos estão relacionados às disputas pelo território, em espaços comuns do povo, principalmente os das comunidades tradicionais. “Os conflitos se intensificam entre a visão diversa do capital viabilizado pelos governos e a visão cosmológica dos povos e comunidades tradicionais”, colocou.

Conforme aponta o trabalho, o maior número de conflitos pela água em 2013 esteve relacionado com a construção de hidrelétricas, com 44 ocorrências, e cresceu em áreas de mineração (onde houve 31 ocorrências). Este tipo de conflito aconteceu em maior quantidade na região Nordeste (43% destes), seguido do Norte (com 25%) e do Sudeste (18%).

No tocante ao número de expulsões e despejos, enquanto houve uma redução em relação a 2012 de um modo geral, na Amazônia foi registrado aumento deste tipo de prática. O número de famílias expulsas de áreas diversas, lá, foi ampliado em 11% e o de despejados, em 76% (passou de 1.795 famílias para 3.167). O relatório também mostra que, na Amazônia, houve crescimento acentuado de 126%, do número de famílias com casas destruídas. As que tiveram seus bens destruídos foram 19% a mais que as de 2012.

Para os pesquisadores Carlos Walter Porto-Gonçalves e Danilo Cuin – que participaram da elaboração do trabalho – está em curso no país uma “geopolítica da despossessão”. E, nesse contexto, “as maiores vítimas são as populações que tradicionalmente ocupam o território”. “O colonialismo não é somente um período do nosso passado histórico, mas uma característica necessária do capitalismo em sua dinâmica de acumulação incessante de capital que implica, inclusive, expansão geográfica para regiões tradicionalmente ocupadas por outros grupos/classes sociais/etnias/povos/nacionalidades”, enfatizam, no documento.

Áreas mais observadas

Os números assustam nos mais amplos aspectos. Em relação a áreas de conflito, por exemplo, no ano passado registraram-se 847 destas áreas, nas quais 99.798 famílias estiveram envolvidas. Esse número é apenas ligeiramente menor que o de 2012 (110.130). Mesmo assim o número de conflitos, em 2013, atingiu uma cifra que é amplamente superior à média anual do período 1985-2006, que foi de 671.

Outra constatação é a de que, entre os agentes que protagonizam violência no campo brasileiro, cresceu a participação das mineradoras. Tais empresas foram responsáveis por 7% do total de conflitos, observados em 46 áreas. Destes, 65% aconteceram na região Nordeste e 22% na região Norte. Nos dados apurados, a CPT também aponta que a ação do poder público aparece em 90 ocorrências em que foi possível identificar os protagonistas de tais atos (10,1% dos casos).

“O poder público detém a prerrogativa do monopólio da violência, mas deve respeitar valores, como a imparcialidade. Não é o que se observa: a ação do poder público é amplamente usada na defesa da propriedade, dos proprietários, sobretudo dos grandes (latifundiários). É o que se depreende dos registros de conflitos pela terra no país”, critica o documento – que ainda atribui ao poder público em todas as suas esferas a função prioritária de dar ordens de prisões e de despejos em atendimento a reivindicações judiciais de proprietários, com poucas intervenções na busca por diálogos e negociações que ajudem a resolver conflitos.

Sem-terra e assentados

Quanto aos trabalhadores rurais sem-terra e os assentados, estes são citados pela CPT como a categoria que, em 2013, somou 36% do total de pessoas que sofreram violência em luta pela terra, em segundo lugar, logo atrás das populações tradicionais. A pesquisadora Anna Maria Gallazzi foi quem melhor traduziu, no trabalho, o alerta que deve ser dado aos responsáveis por políticas no país em relação aos dados divulgados. “Números não são somente números. Eles trazem o estampido das balas, o cheiro do sangue que se espalha no chão encharcando a poeira, com sua cor escura”, acentuou.

O relatório da CPT é divulgado anualmente, a partir de dados apurados mediante fontes de pesquisa primária e secundária. As fontes primárias são feitas pelos agentes dos regionais da comissão em todo o país, bem como declarações, cartas assinadas, boletins de ocorrência, relatos repassados pelos movimentos sociais, igrejas, sindicatos e outras organizações e entidades diretamente ligadas à luta dos trabalhadores As fontes secundárias são as que partem de pesquisas feitas em levantamentos de revistas, jornais de circulação local, estadual e nacional, boletins e publicações de diversas.