Nova realidade

Quadro político fragmentado embaralha sucessão alemã

Cinco legendas tiveram mais de 10% dos votos cada, cenário bem distinto de quando Angela Merkel se tornou primeira-ministra, em 2005. Ali, só CDU/CSU e SPD alcançaram os dois dígitos, conquistando juntos 70% dos votos

Steffen Prößdorf/Creative Commons
Steffen Prößdorf/Creative Commons
A ginástica para se formar um novo governo deve ser maior com um Parlamento mais fragmentado

São Paulo – A Alemanha, que viveu durante décadas um cenário praticamente bipartidário, no qual CDU/CSU e SPD disputavam as eleições com tal domínio que em diversas ocasiões tiveram que compor entre si para formarem governos, hoje vive uma realidade diferente. Diante da improvável reedição da “grande coalizão” entre as duas legendas na sucessão alemã, o novo governo deve ser formado por três partidos, algo raro no país.

No pleito realizado em 26 de setembro, cinco legendas tiveram mais de 10% dos votos cada. Para efeito de comparação, quando Angela Merkel se tornou primeira-ministra, em 2005, só CDU/CSU e SPD alcançaram os dois dígitos, conquistando juntos aproximadamente 70% dos votos.

Assim, é possível que a ginástica para se formar um novo governo tenha que ser maior desta vez. “A próxima coalizão provavelmente será composta por três partidos, com um acordo de ‘semáforo’ entre o SPD, os verdes e o FDP. Eles serão capazes de chegar a um acordo com relativa facilidade sobre questões sociais – como política de drogas, proteção de dados e legislação relativa à nacionalidade – mas há diferenças substanciais na política econômica e ambiental e todas as partes terão que se comprometer”, pondera o co-diretor do Aston Centre for Europe e presidente interino da Associação Internacional para o Estudo da Política Alemã Ed Turner, em entrevista à RBA.

“A imprensa alemã está argumentando que o FDP (Partido Democrático Liberal) e os verdes decidirão entre si qual dos dois partidos principais governará com eles – um caso real de ‘rabo abanando o cachorro’. É justo dizer que o FDP quer que o CDU lidere o governo (porque o FDP quer cortes de impostos para as empresas), enquanto os verdes querem o SPD (porque querem aumentos de impostos direcionados para fins redistributivos e ambientais)”, analisa o professor de História Internacional da Universidade Flinders, Matt Fitzpatrick, à RBA. “Não deve ser descartada, no entanto, a chance de o FDP ser excluído ou ir embora, como aconteceu em 2017. Isso pode significar algo como outra grande coalizão ou a chamada coalizão do SPD do Quênia com os verdes e o CDU. Em qualquer caso, tudo isso levará meses para decidir.”

Quando fala da eleição de 2017, Fitzpatrick faz referência a uma atitude que ficou mal vista por parte do espectro político germânico. Após um mês de negociações, os liberais, que dialogavam com o partido de Merkel e os verdes para a formação do novo governo, abandonaram as conversas criando àquela altura uma crise política sem precedentes desde a formação da República Federal da Alemanha, em 1949. Ali, chegou-se inclusive a cogitar a antecipação das eleições que ocorreram no domingo para o início de 2018. Ao fim, os social-democratas aceitaram compor com o CDU-CSU.

Desempenho do Die Linke impede coalizão mais progressista

Boa parte dos social-democratas e dos verdes esperava poder compor com o Die Linke, legenda de esquerda que defende o chamado socialismo democrático. Mas o desempenho eleitoral da agremiação foi frustrante.

“A construção de uma coalizão governamental será difícil, visto que o SPD e os verdes esperavam poder formar uma coalizão como a de Gerhard Schröder e Joschka Fischer”, pontua Fitzpatrick, lembrando da coalizão entre o SPD e o Partido Verde que comandou o país entre 1998 e 2005, após o governo de Helmut Kohl. “Nenhum dos dois teve votos suficientes para isso. A outra ideia, de que o SPD e os verdes poderiam convidar o Die Linke ao governo para garantir a maioria, também não funcionará, devido ao colapso da votação do Die Linke, que foi reduzida à metade. Na verdade, o Die Linke só pode permanecer no Bundestag porque conquistaram três cadeiras por mandato direto. Caso contrário, com menos de 5% dos votos, eles teriam sido excluídos do Bundestag. Essa coalizão Esquerda-Esquerda-Verde teria sido um experimento interessante em social-democracia verde, mas não foi possível.”

A sigla obteve 4,9% dos votos e quase não garantiu presença no Parlamento, reduzindo sua participação de 69 para 39 assentos. Se em outros países da Europa partidos de esquerda conseguiram nos últimos anos ganhar projeção e participar de coalizões com legendas de centro-esquerda, como aconteceu na Espanha e em Portugal, o mesmo não ocorreu na Alemanha.

“O Die Linke sofreu com a liderança divisionista e uma facção parlamentar rebelde, e isso contribuiu para o resultado no domingo. Um terço de seus eleitores foi para o SPD e outro quarto para os verdes. Se não tivessem conquistado pelo menos três mandatos diretos (constituintes), teriam sido excluídos do Bundestag. Portanto, a política local os salvou desta vez, mas esta não é uma base forte para construir um partido nacional”, observa à RBA, o diretor do Centro de Estudos Alemães e professor associado de Estudos Alemães na Universidade de Waterloo, James M. Skidmore.

Ed Turner também enxerga nas divisões internas um dos fatores que pode explicar a queda do Die Link, mas o cenário exige uma discussão a respeito da própria identidade da legenda. “O principal partido de centro-esquerda na Alemanha é o SPD e ele ganhou terreno. Acho que parte disso veio de eleitores anteriores do Die Linke que fizeram as pazes com o SPD e queriam ver Olaf Scholz como chanceler. Mas o Die Linke também está bastante dividido internamente, e não estava muito claro o que o partido defendia. Eles precisarão se reagrupar e considerar cuidadosamente o equilíbrio das políticas e se visam um partido de campanha, um ‘movimento’ ou um potencial parceiro de coalizão.”

Extrema-direita isolada na sucessão alemã

Os resultados da eleição alemã também mostraram uma estagnação da Alternativa para a Alemanha (AfD), partido de extrema direita anti-imigração e que defende a saída da Alemanha da União Europeia e a abolição do euro. A legenda, que também nega que as mudanças climáticas sejam decorrentes da ação humana, ficou com 10,3% dos votos, passando de 88 parlamentares para 83.

Como em outras partes do mundo, é uma agremiação que tenta lucrar em cima de crises. “A AfD continua sendo o partido do ressentimento e da reclamação. Em 2013, sua primeira eleição nacional, eles fizeram campanha contra o euro durante a crise da moeda. Na eleição de 2017, fizeram campanha contra os migrantes, capitalizando as consequências da crise migratória. E, nesta eleição, fizeram campanha contra as medidas estaduais de combate à pandemia de covid-19. Em todas as três eleições, essas crises foram alavancadas pela AfD como se fossem ataques contra a identidade alemã, e eles se apresentaram como o único partido disposto a defender essa identidade”, explica James Skidmore. “Eles sempre precisarão de algum tipo de crise que permita que eles participem dessa discussão, caso contrário, seu apoio diminuirá. Permanecem muito fortes em algumas partes da ex-Alemanha Oriental, entretanto, não irão desaparecer do cenário nacional tão cedo.”

“É notável que a extrema direita tenha se saído muito melhor no leste (19,2%) do que no oeste (8,1%) da Alemanha. No geral, ficaram ligeiramente abaixo – esperavam por melhores resultados, especialmente no oeste, mas parecem ter se estabelecido como parte do sistema político da Alemanha. Como um partido, estão se tornando mais radicais – os partidos estaduais do leste são mais radicais do que os do oeste e, portanto, estão mais longe de qualquer chance de serem considerados para a participação do governo”, avalia Ed Turner.

Quem se firmou para exercer um papel de protagonismo na política germânica, apesar de ter tido, a certa altura do processo eleitoral, até mesmo a possibilidade de vitória, foi o Partido Verde. Confira mais em Partido Verde alemão traz mudança climática ao centro do debate.