Gabo, os 85 anos do observador insaciável

Eric Nepomuceno fala sobre o escritor colombiano, que faz aniversário hoje. Neste ano, completam-se 45 anos do lançamento de sua obra-prima, 'Cem Anos de Solidão', que ganha versão eletrônica

O escritor colombiano Gabriel Garcia Marques, que completa 85 anos, em foto para a Revista do Brasil, cinco anos atrás (©Reuters)

São Paulo – Em março de 1981, Gabriel García Márquez recebeu em Cartagena das Índias um editor de Barcelona, que fazia uma escala na Colômbia. Depois de saborear uma comida criolla, participar de várias atividades e tomar 11 copos de uísque, foi embora atordoado com tantos acontecimentos em um só dia, mas não sem antes dizer ao escritor: “Você não inventou nada em seus livros. Você é um simples escrivão sem imaginação”. A história, narrada pelo próprio García Márquez em um livro de crônicas, pode dar a impressão de um cotidiano sempre fora do comum. 

Para o crítico norte-americano Harold Bloom, a quantidade de vida em cada página de “Cem Anos de Solidão”, ultrapassa nossa capacidade de absorção. Leia perfil na edição nº 11, de abril de 2007, da Revista do Brasil, quando o escritor completara 80 anos

Hoje, o escritor nascido em Aracataca completa 85 anos. Nasceu em um domingo, “el primeiro de siete varones y cuatro mujeres”, às 9 da manhã, “con un aguacero torrencial fuera de estación”.O jornalista Eric Nepomuceno, amigo e tradutor do colombiano, diz que na verdade García Márquez é uma pessoa simples, mas um observador excepcional. “Ele vive com uma antena, uma rede perfeita para o mundo. É um observador insaciável.”

E 2012 reserva outros motivos de lembrança: 65 anos de seu primeiro conto (“A terceira resignação”, no jornal colombiano El Espectador, em 13 de setembro), 45 anos do lançamento de “Cem Anos de Solidão” (30 de maio de 1967), 30 do Prêmio Nobel e dez da publicação da primeira parte de suas memórias, “Viver para Contar”. Segundo o jornal espanhol El País, um dos principais presentes será dado pela editora Carmen Balcells, amiga e agente literária em Barcelona: além das tradicionais rosas amarelas das quais o escritor tanto gosta, será lançada a primeira edição eletrônica de “Cem Anos de Solidão” – a princípio, apenas em espanhol. 

“Minha relação com ele tem sido uma experiência tão enriquecedora que já não lembro nem quando começou. Mas seguimos nessa nuvem de sonho, ainda mais agora, quando todos falam do mundo cibernético e dessa nuvem onde se podem alojar todas as histórias e os livros”, declarou Carmen ao El País

Jornalista desde jovem, García Márquez criou em 1994 a Fundação Nuevo Periodismo Iberoamericano (FNPI), espaço de discussões e eventos sobre “a melhor profissão do mundo”, como diz o escritor. Mesmo tendo sido repórter – ou talvez por isso –, ele tem aversão a entrevistas. “Uns e outros (referindo-se a entrevistadores e entrevistados), por sua vez, não aprenderam ainda que as entrevistas são como o amor: são necessárias pelo menos duas pessoas para fazê-las, e só resultam boas e essas duas pessoas se querem”, escreveu.

A FNPI publicou uma página especial no Facebook para homenagear seu maestro.

Por ter “alergia a best-seller“, Eric Nepomuceno conta ter sido um leitor tardio de “Cem Anos…”. Começou com “Relato de um Náufrago” (1970) e seguiu com o que se tornaria seu favorito, “Ninguém Escreve ao Coronel”, de 1961. O próprio autor, conta Nepomuceno, classifica essa obra como “invulnerável”, que não teria como ser atacada. O jornalista só foi abrir “Cem Anos…” quase em meados dos anos 1970, “quando já era um clássico, sem dúvida um dos livros mais importantes escritos em qualquer idioma”.  

Ele recorda de uma história curiosa ocorrida durante a preparação do lançamento de uma edição comemorativa dos 40 anos do livro. Foi quando se descobriu, como se diz no cinema, um erro de continuidade. “Um camarada (Aureliano Segundo) tem uma amante. Em certa altura do livro, ele sai da casa da amante e volta para a casa da amante. O livro já tinha milhões de exemplares e ninguém tinha percebido. Nem ele (García Márquez).” O caso foi motivo de diversão para autor e tradutor, que se conheceram em 1978, em Havana.

Nobel da Paz

Nepomuceno considera o escritor um caso singular. “A América Latina tem uma literatura fortíssima, criativa, que responde à nossa diversidade, mas ele vai além disso. Não só fez literatura de alto nível, como conseguiu o que nenhum outro conseguiu: ele não é popular, ele é querido”, diz. “Quando ganhou o Nobel de Literatura, ele brincava dizendo que tinha ganhado o Nobel da Paz.”

Na época, Gabo, como também é conhecido, era um interlocutor entre nações. “Era uma voz ouvida tanto pelos governos como pelas guerrilhas”, observa Nepomuceno. Ele lembra de revelação feita pelo escritor Fernando Morais no livro “Os Últimos Soldados da Guerra Fria”, lançado em 2011. Na obra, García Márquez surge como uma espécie de pombo-correio entre Fidel Castro e Bill Clinton. “Tanto o cidadão como o autor são figuras-chaves da nossa vida contemporânea.”

Sobre o amigo, Nepomuceno conta que uma de suas principais características é justamente preservar a vida pessoal, a privacidade. “Ele tem um sentido de máfia na amizade”, define. Afeto e fidelidade incondicionais aos amigos. Sem dúvida, Gabo ficará feliz com festas e homenagens que se façam e ele. “Mas a comemoração mesmo é com os amigos, a família.”

Traduções sempre reservam desafios, com suas alegrias e dificuldades, observa Nepomuceno. “No caso García Márquez, o truque é o rigor dele, a estrutura, a carpintaria que está por trás da própria frase, escapar do fluxo musical.” 

Aos 85 anos, pode-se esperar mais um algum lançamento do autor de “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985), “Doze Contos Peregrinos” (1992) e “Memórias de Minhas Putas Tristes” (2004), entre outras tantas obras? Nepomuceno deixa a questão em aberto. “Ele me diz há muitos anos que parou de escrever. Agora, a gente nunca sabe o que tem nas gavetas.”