Clarín foi um dos grandes beneficiados dos Kirchner, afirma professor

Cientista político argentino discute situação do país no bicentenário e afirma que grupo de comunicação se fortaleceu por políticas de Néstor Kirchner

Governo argentino retomou direitos de transmissão de eventos esportivos com publicidade da solenidade de anúncio da medida (foto), em agosto. Políticas anteriores favoreceram grupos de comunicação (Foto: Casa Rosada/Divulgação)

O conflito entre o Clarín e o governo argentino é uma das disputas instaladas no país nas vésperas de completar 200 anos em 2010. A Argentina aproxima-se de seu bicentenário distante da maneira que se poderia esperar na primeira metade do século passado, quando o país ostentava a condição de uma das melhores economias mundiais e se orgulhava de comandar o continente. A análise é do cientista político Atílio Borón, na segunda parte da entrevista à Rede Brasil Atual.

O último episódio na relação com o grupo de comunicação foi inspeção nos veículos da empresa pela Receita Federal na quinta-feira (10). A ação foi atacada pelos mesmos em notícias e editoriais, com a colaboração dos congêneres de outras partes da América do Sul. O governo não assume a autoria da operação, e acusa que o mentor foi alguém que pretendia colocar a Casa Rosada como autoritária.

As rusgas com o ultrapoderoso Grupo Clarín, dono do jornal de maior circulação, de revistas, TVs, rádios, operadoras de TV a cabo, se desenhavam há mais de um ano. Elas guardam relação com outras divisões no país e a dificuldade do governo para lidar com setores dominantes.

Atualmente, o país é apenas a terceira economia latino-americana, bem distante de Brasil e de México, os dois primeiros, e conforma-se com a condição de um país intermediário no cenário mundial. Convive com alto endividamento, índices de pobreza em elevação e sistemas de educação e de saúde caminhando para a falência.

Borón, professor do Programa Latino-americano de Educação a Distância em Ciências Sociais, aponta que os Kirchner se equivocaram ao não realizar reformas econômicas e sociais e parecem estar conformados que o Consenso de Washington – referência do pensamento econômico neoliberal – não é tão ruim assim.

“O Grupo Clarín é um grupo monopólico muito importante da Argentina e que tinha o monopólio das transmissões de futebol, era um negócio muito grande. Mas, diga-se, o governo havia dado todas as facilidades e privilégios ao grupo no passado. O Clarín foi um dos grandes beneficiados com as políticas do kirchnerismo no passado” – Atílio Borón

Sobre as eleições de 2011, o cientista político considera difícil que alguma força externa ao Justicialismo ocupe a Casa Rosada, sede do governo. Fundado por Juan Domingo Perón, o Partido Justicialista abriga forças dos mais distintos espectros ideológicos e, desde a redemocratização, em 1983, ocupou a Casa Branca com Carlos Menem (1989-99) e com o casal Kirchner (2003 até hoje).

RBA – A Argentina chega ao bicentenário em 2010. É da maneira que se poderia esperar?

Não, a verdade é que esperávamos chegar em melhores condições. Porque há, em primeiro lugar, o forte impacto da crise mundial sobre a economia argentina, e ao mesmo tempo um enfraquecimento do governo de Cristina Kirchner produzido pela ofensiva dos setores da direita mais radical da Argentina, que coloca em perigo o futuro político deste país.

RBA – Em que sentido?

No sentido de que se alimenta a perspectiva de um futuro governo que possa tratar de reencaminhar a situação ou a inserção internacional da Argentina em uma direção mais de acordo com os trajetos do imperialismo.

Para Borón, Kirchners se descuidaram por completo da criação de um movimento soscial forte que pudesse sustentar o processo de transformação e optaram por baixar o predomínio político nos velhos aparatos do justicialismo e da CGT

Por exemplo, redefinindo a política a ser seguida com relação à revolução bolivariana, tratando de fortalecer tendências que debilitem o Mercosul e a Unasul e que façam o futuro governo cair na ilusão de um acordo especial com os Estados Unidos. Uma espécie de novo Tratado de Livre Comércio, algo que em alguns países é uma espécie de superstição muito cobiçada.

RBA – Em que medida se equivocaram os Kirchner?

Creio que basicamente se equivocaram em duas coisas. Em primeiro lugar, na redefinição de alianças políticas que os levou a descuidar por completo da criação de um forte movimento social que pudesse sustentar o processo de transformação. E no lugar disso optaram por baixar o predomínio político nos velhos aparatos do justicialismo e da CGT (Confederação Geral do Trabalho, maior central sindical argentina), que está muito desprestigiada. Ou seja, não restou muita base de apoio nem muita militância.

Em segundo lugar, o que houve foi uma enorme dificuldade para iniciar política efetiva de reformas econômicas e sociais de fundo. Por algum motivo, esse processo sequer começou – talvez convencidos de que o Consenso de Washington não era assim tão ruim. Se você olha o panorama da economia argentina hoje, é uma economia que segue muito condicionada pelo tipo de políticas estabelecidas pelo menemismo na década de 90 (Carlos Menem foi presidente de 1989 a 1999).

Uma economia que cresceu a taxas “chinesas” durante os últimos seis anos e que não teve condições de modificar em um sentido progressivo a distribuição da renda.

RBA – De alguma maneira não se rompeu com o corralito de 2001.

“Aqui o que houve foi que as empresas privatizadas que começaram a fazer um negócio ruim foram reabsorvidas pelo governo, mas não houve um processo de querer avançar a um novo modelo econômico-político” – Atílio Borón

Não houve projeto de romper com isso. O que se vê é que houve algumas políticas de resgate de empresas públicas que estavam falidas, como a Aerolíneas Argentinas, que supostamente havia sido recuperada pelo Estado, coisa que ainda não foi: ela segue sendo propriedade de um grupo empresarial espanhol. Mas o governo nacional está subsidiando fortemente a empresa com uma cifra próxima a US$ 1 milhão diários.

Aqui o que houve foi que as empresas privatizadas que começaram a fazer um negócio ruim foram reabsorvidas pelo governo, mas não houve um processo de querer avançar a um novo modelo econômico-político deixando de lado o Consenso de Washington, para uma economia reformada, pós-capitalista, ou que pelo menos fizesse alguns desafios à ordem neoliberal. E isso está na base do desempenho eleitoral pobre que teve o kirchnerismo nas últimas eleições.

RBA– O senhor pensa que a briga com o Grupo Clarín que se arrasca há algum tempo (a entrevista foi concedida em agosto) tem a ver com o desempenho ruim nas eleições?

Em boa medida, sim. O Grupo Clarín é um grupo monopólico muito importante da Argentina e que tinha o monopólio das transmissões de futebol, era um negócio muito grande.

Mas, diga-se, o governo havia dado todas as facilidades e privilégios ao grupo no passado. O Clarín foi um dos grandes beneficiados com as políticas do kirchnerismo no passado. Agora tem algo a ver com a Triple P (Cabo, internet e telefonia) e o Grupo Clarín quer participar. Houve um desacordo e isso é parte do governo.

RBA – O presidente da próxima década sairá do Justicialismo ou há alguma força política que pode surpreender?

“A direita, por sorte, ainda que contando com uma situação extremamente favorável, não conseguiu apresentar uma frente unida para enfrentar o kirchnerismo, o que manifesta uma completa inaptidão política, e vai ser difícil que apresentem um candidato unificado para as próximas eleições” – Atílio Borón

É muito difícil. Por hoje, não vejo outra força que possa competir seriamente com o Justicialismo, salvo que o governo cometa demasiados novos erros. A possibilidade de que saia um presidente de uma organização política distinta do PJ é sumamente baixa.

Eu não descarto porque, na Argentina, a política é muito dinâmica e muda muito rapidamente, mas parece pouco provável em parte pela grande fragmentação da direita – a direita, por sorte, ainda que contando com uma situação extremamente favorável, não conseguiu apresentar uma frente unida para enfrentar o kirchnerismo, o que manifesta uma completa inaptidão política, e vai ser difícil que apresentem um candidato unificado para as próximas eleições.

Mas, insisto, é preciso ver que erros vai cometer o governo. Temos agora, segundo medições confiáveis, uma proporção de pobres superior aos níveis alcançados pelo kirchnerismo. Entenda, Kirchner fez um grande trabalho em baixar o número de pobres – em parte ajudado pelo antecessor, Eduardo Duhalde. Foi o grande ganho do kircherismo. Mas parte dos avanços foram perdidos e, hoje, a taxa vem crescendo. Ou seja, seis anos depois, retrocedemos, e nisso há uma sensação de fracasso muito forte. Este governo tem uma tendência aparentemente incurável de equivocar-se e cometer toda classe de burrices.

RBA– O senhor acredita que pode vir a passar um novo “que se vayan todos” (a crise no sistema bancário de 2001)?

“Não se pode voltar a 2001 porque Duhalde e Kirchner fizeram algumas coisas muito bem, entre elas a solvência do sistema bancário” – Atílio Borón

Não. Não creio porque uma das coisas que fez bem Duhalde e depois Kirchner foi recompor de maneira muito forte o sistema bancário e evitar um colapso como o que se fez em 2001. Por isso, foi um absurdo a propaganda eleitoral dos Kirchner agora em junho de dizer que “ou ganhamos as eleições ou voltamos a 2001”. Não se pode voltar a 2001 porque Duhalde e Kirchner fizeram algumas coisas muito bem, entre elas a solvência do sistema bancário.

RBA– No tema de democracia e de direitos humanos, como está o país hoje em dia?

“Na Argentina, estamos cumprindo o compromisso de castigar os que torturaram, assassinaram e desapareceram com milhares e milhares de companheiros nossos aos quais foi negado o mais elementar direito à defesa. Isso é algo único na América Latina” – Atílio Borón

Avançando lentamente, mas avançando. Parece que o tema dos militares aos poucos se vai mobilizando. Foram derrubadas as leis de impunidade, o que é muito importante. Neste ponto há uma grande dinâmica da sociedade que o governo acompanha. Não é o governo quem impulsiona, é a sociedade civil que faz o movimento muito forte de exigir julgamento e castigo a todos os culpados (por torturas e assassinatos do período da ditadura militar).

Agora estão sendo condenados militares que estão bastante idosos e debilitados, mas são crimes que não prescrevem, devem pagar por isso e estão indo para a cadeia. Nisso há o sentido de que, na Argentina, estamos cumprindo o compromisso de castigar os que torturaram, assassinaram e desapareceram com milhares e milhares de companheiros nossos aos quais foi negado o mais elementar direito à defesa. Isso é algo único na América Latina.

Volto a repetir: é um impulso muito forte da sociedade ao qual o kirchnerismo soube acompanhar muito bem, melhor que outros. É um êxito do kirchnerismo que é absolutamente incontestável.

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