Clarín foi um dos grandes beneficiados dos Kirchner, afirma professor
Cientista político argentino discute situação do país no bicentenário e afirma que grupo de comunicação se fortaleceu por políticas de Néstor Kirchner
Publicado 11/09/2009 - 13h05
Governo argentino retomou direitos de transmissão de eventos esportivos com publicidade da solenidade de anúncio da medida (foto), em agosto. Políticas anteriores favoreceram grupos de comunicação (Foto: Casa Rosada/Divulgação)
O conflito entre o Clarín e o governo argentino é uma das disputas instaladas no país nas vésperas de completar 200 anos em 2010. A Argentina aproxima-se de seu bicentenário distante da maneira que se poderia esperar na primeira metade do século passado, quando o país ostentava a condição de uma das melhores economias mundiais e se orgulhava de comandar o continente. A análise é do cientista político Atílio Borón, na segunda parte da entrevista à Rede Brasil Atual.
O último episódio na relação com o grupo de comunicação foi inspeção nos veículos da empresa pela Receita Federal na quinta-feira (10). A ação foi atacada pelos mesmos em notícias e editoriais, com a colaboração dos congêneres de outras partes da América do Sul. O governo não assume a autoria da operação, e acusa que o mentor foi alguém que pretendia colocar a Casa Rosada como autoritária.
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As rusgas com o ultrapoderoso Grupo Clarín, dono do jornal de maior circulação, de revistas, TVs, rádios, operadoras de TV a cabo, se desenhavam há mais de um ano. Elas guardam relação com outras divisões no país e a dificuldade do governo para lidar com setores dominantes.
Atualmente, o país é apenas a terceira economia latino-americana, bem distante de Brasil e de México, os dois primeiros, e conforma-se com a condição de um país intermediário no cenário mundial. Convive com alto endividamento, índices de pobreza em elevação e sistemas de educação e de saúde caminhando para a falência.
Borón, professor do Programa Latino-americano de Educação a Distância em Ciências Sociais, aponta que os Kirchner se equivocaram ao não realizar reformas econômicas e sociais e parecem estar conformados que o Consenso de Washington – referência do pensamento econômico neoliberal – não é tão ruim assim.
Sobre as eleições de 2011, o cientista político considera difícil que alguma força externa ao Justicialismo ocupe a Casa Rosada, sede do governo. Fundado por Juan Domingo Perón, o Partido Justicialista abriga forças dos mais distintos espectros ideológicos e, desde a redemocratização, em 1983, ocupou a Casa Branca com Carlos Menem (1989-99) e com o casal Kirchner (2003 até hoje).
RBA – A Argentina chega ao bicentenário em 2010. É da maneira que se poderia esperar?
Não, a verdade é que esperávamos chegar em melhores condições. Porque há, em primeiro lugar, o forte impacto da crise mundial sobre a economia argentina, e ao mesmo tempo um enfraquecimento do governo de Cristina Kirchner produzido pela ofensiva dos setores da direita mais radical da Argentina, que coloca em perigo o futuro político deste país.
RBA – Em que sentido?
No sentido de que se alimenta a perspectiva de um futuro governo que possa tratar de reencaminhar a situação ou a inserção internacional da Argentina em uma direção mais de acordo com os trajetos do imperialismo.
Por exemplo, redefinindo a política a ser seguida com relação à revolução bolivariana, tratando de fortalecer tendências que debilitem o Mercosul e a Unasul e que façam o futuro governo cair na ilusão de um acordo especial com os Estados Unidos. Uma espécie de novo Tratado de Livre Comércio, algo que em alguns países é uma espécie de superstição muito cobiçada.
RBA – Em que medida se equivocaram os Kirchner?
Creio que basicamente se equivocaram em duas coisas. Em primeiro lugar, na redefinição de alianças políticas que os levou a descuidar por completo da criação de um forte movimento social que pudesse sustentar o processo de transformação. E no lugar disso optaram por baixar o predomínio político nos velhos aparatos do justicialismo e da CGT (Confederação Geral do Trabalho, maior central sindical argentina), que está muito desprestigiada. Ou seja, não restou muita base de apoio nem muita militância.
Em segundo lugar, o que houve foi uma enorme dificuldade para iniciar política efetiva de reformas econômicas e sociais de fundo. Por algum motivo, esse processo sequer começou – talvez convencidos de que o Consenso de Washington não era assim tão ruim. Se você olha o panorama da economia argentina hoje, é uma economia que segue muito condicionada pelo tipo de políticas estabelecidas pelo menemismo na década de 90 (Carlos Menem foi presidente de 1989 a 1999).
Uma economia que cresceu a taxas “chinesas” durante os últimos seis anos e que não teve condições de modificar em um sentido progressivo a distribuição da renda.
RBA – De alguma maneira não se rompeu com o corralito de 2001.
Não houve projeto de romper com isso. O que se vê é que houve algumas políticas de resgate de empresas públicas que estavam falidas, como a Aerolíneas Argentinas, que supostamente havia sido recuperada pelo Estado, coisa que ainda não foi: ela segue sendo propriedade de um grupo empresarial espanhol. Mas o governo nacional está subsidiando fortemente a empresa com uma cifra próxima a US$ 1 milhão diários.
Aqui o que houve foi que as empresas privatizadas que começaram a fazer um negócio ruim foram reabsorvidas pelo governo, mas não houve um processo de querer avançar a um novo modelo econômico-político deixando de lado o Consenso de Washington, para uma economia reformada, pós-capitalista, ou que pelo menos fizesse alguns desafios à ordem neoliberal. E isso está na base do desempenho eleitoral pobre que teve o kirchnerismo nas últimas eleições.
RBA– O senhor pensa que a briga com o Grupo Clarín que se arrasca há algum tempo (a entrevista foi concedida em agosto) tem a ver com o desempenho ruim nas eleições?
Em boa medida, sim. O Grupo Clarín é um grupo monopólico muito importante da Argentina e que tinha o monopólio das transmissões de futebol, era um negócio muito grande.
Mas, diga-se, o governo havia dado todas as facilidades e privilégios ao grupo no passado. O Clarín foi um dos grandes beneficiados com as políticas do kirchnerismo no passado. Agora tem algo a ver com a Triple P (Cabo, internet e telefonia) e o Grupo Clarín quer participar. Houve um desacordo e isso é parte do governo.
RBA – O presidente da próxima década sairá do Justicialismo ou há alguma força política que pode surpreender?
É muito difícil. Por hoje, não vejo outra força que possa competir seriamente com o Justicialismo, salvo que o governo cometa demasiados novos erros. A possibilidade de que saia um presidente de uma organização política distinta do PJ é sumamente baixa.
Eu não descarto porque, na Argentina, a política é muito dinâmica e muda muito rapidamente, mas parece pouco provável em parte pela grande fragmentação da direita – a direita, por sorte, ainda que contando com uma situação extremamente favorável, não conseguiu apresentar uma frente unida para enfrentar o kirchnerismo, o que manifesta uma completa inaptidão política, e vai ser difícil que apresentem um candidato unificado para as próximas eleições.
Mas, insisto, é preciso ver que erros vai cometer o governo. Temos agora, segundo medições confiáveis, uma proporção de pobres superior aos níveis alcançados pelo kirchnerismo. Entenda, Kirchner fez um grande trabalho em baixar o número de pobres – em parte ajudado pelo antecessor, Eduardo Duhalde. Foi o grande ganho do kircherismo. Mas parte dos avanços foram perdidos e, hoje, a taxa vem crescendo. Ou seja, seis anos depois, retrocedemos, e nisso há uma sensação de fracasso muito forte. Este governo tem uma tendência aparentemente incurável de equivocar-se e cometer toda classe de burrices.
RBA– O senhor acredita que pode vir a passar um novo “que se vayan todos” (a crise no sistema bancário de 2001)?
Não. Não creio porque uma das coisas que fez bem Duhalde e depois Kirchner foi recompor de maneira muito forte o sistema bancário e evitar um colapso como o que se fez em 2001. Por isso, foi um absurdo a propaganda eleitoral dos Kirchner agora em junho de dizer que “ou ganhamos as eleições ou voltamos a 2001”. Não se pode voltar a 2001 porque Duhalde e Kirchner fizeram algumas coisas muito bem, entre elas a solvência do sistema bancário.
RBA– No tema de democracia e de direitos humanos, como está o país hoje em dia?
Avançando lentamente, mas avançando. Parece que o tema dos militares aos poucos se vai mobilizando. Foram derrubadas as leis de impunidade, o que é muito importante. Neste ponto há uma grande dinâmica da sociedade que o governo acompanha. Não é o governo quem impulsiona, é a sociedade civil que faz o movimento muito forte de exigir julgamento e castigo a todos os culpados (por torturas e assassinatos do período da ditadura militar).
Agora estão sendo condenados militares que estão bastante idosos e debilitados, mas são crimes que não prescrevem, devem pagar por isso e estão indo para a cadeia. Nisso há o sentido de que, na Argentina, estamos cumprindo o compromisso de castigar os que torturaram, assassinaram e desapareceram com milhares e milhares de companheiros nossos aos quais foi negado o mais elementar direito à defesa. Isso é algo único na América Latina.
Volto a repetir: é um impulso muito forte da sociedade ao qual o kirchnerismo soube acompanhar muito bem, melhor que outros. É um êxito do kirchnerismo que é absolutamente incontestável.