teatro e literatura

O universo feminino de Mia Couto no palco do Sesc Consolação

Ninguém no Plural apresenta as histórias de desamor, desencontros e de sonhos não realizados do livro O Fio das Miçangas, do escritor moçambicano

divulgação

Cena de Ninguém no Plural: delicadeza do universo feminino a partir do olhar do escritor Mia Couto

São Paulo – “Toda a vida acreditei: amor é os dois se duplicarem em um. Mas hoje sinto: ser um é ainda muito. De mais. Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada. Ninguém no plural. Ninguéns.” A frase é do livro O Fio das Missangas, do escritor moçambicano Mia Couto, que ganhou neste ano o Prêmio Camões.

Os contos A Despedideira, O Cesto, Os Olhos dos Mortos e Meia Culpa, Meia Própria Culpa foram adaptados na peça teatral Ninguém no Plural, da Companhia As de Fora, que estreia no dia 5 de agosto, no Espaço Beta do Sesc Consolação, em São Paulo.

Mulheres invisíveis para seus companheiros, esquecidas e maltratadas por eles e pela vida. Assim como o livro, a peça dirigida por Rita Grillo entra de cabeça no delicado universo feminino de mulheres condenadas à não-existência e ao esquecimento.

O homem, sempre forte – mesmo estando no leito de morte – é interpretado por Kuarahy Fellipe. Ele está sempre presente na história e ausente na vida dessas mulheres representadas na peça pelas atrizes Anna Zêpa e Tânia Reis. Os quatro universos foram costurados por uma narrativa rica, digna do texto simples e intenso de Mia Couto, e adornados por um cenário que valoriza cada canto como um espaço importante no pequeno mundo delas.

Desimportância épica

Durante uma hora, o espectador vai conhecer fragmentos de histórias como a da mulher cuja única ocupação diária tem sido preparar o cesto para visitar o marido doente no hospital. Rotina insuportável de alguém que nunca teve vida própria e cujo desejo era escrever ao infeliz: “Você, marido, enquanto vivo me impediu de viver. Não me vai fazer gastar mais vida, fazendo demorar, infinita, a despedida”. Pensando que a morte dele faria com que ela renascesse, mais uma vez ela se desilude. “Ao contrário de um alívio, porém, me acontece o desabar de um relâmpago sem chão onde tombar”.

Quem assistir à peça (ou ler o livro) também conhecerá a trágica história de Maria Metade, que casou com um meio-homem. “Me tivesse calhado, ao menos, um homem completo, pessoa acabada. Mas não, me coube a metade de um homem. Se diz, de língua girada: o meu cara-metade. Pois aquele, nem meu, nem cara.  E se metade fosse, não seria só a cara, mas todo ele um semimacho. Para ambos sermos casal, necessitaríamos, enfim, de sermos quatro”.

O espetáculo será apresentado nos dias 5, 6, 12, 13, 19, 20, 26 e 27 de agosto. Uma vez por semana, após o espetáculo, haverá encontros para debater a obra de Mia Couto com os seguintes temas e convidados:

dia 6, terça-feira – Prosa e poesia: como os gêneros se misturam na obra de Mia Couto. Com o escritor Marcelino Freire e o poeta Sérgio Vaz, da Cooperifa;

dia 12, segunda-feira – Oralidade e escrita: como colocar no papel a voz dos personagens levando em conta, sobretudo, a origem de cada autor. Do moçambicano Mia Couto aos nordestinos Marcelino Freire e Gero Camilo, que participam do debate;

dia 19, segunda-feira – Música e literatura: como musicar um texto ou como tornar um texto musical a partir da obra de Mia Couto. Com a escritora Andréa Del Fuego e o compositor Romulo Fróes, autor da trilha sonora da peça;

dia 26, segunda-feira – Influências e confluências: como a literatura se impregna de literatura dos outros e de outras artes, a partir de uma leitura da obra de Mia Couto. Com a escritora Noemi Jaffe e a diretora da peça Rita Grillo.

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Entrevista: Solidão, incomunicabilidade e amor desencontrado

A diretora da peça Ninguém no Plural, Rita Grillo, comenta como a companhia trabalhou com as breves histórias do livro O Fio das Missangas, do prosador e poeta Mia Couto.

Como foi feita a adaptação dos contos?
Num primeiro momento, tentamos deixar as histórias separadas, tanto pela divisão do espaço (o cenário se divide em quatro “espaços”, com características diferentes), quanto pelo próprio texto, que vai contando uma história de cada vez. Aos poucos, no entanto, os pontos coincidentes de cada história vão surgindo e, devagar, as histórias se misturam, até que se tornam uma só.

No livro, o homem está sempre presente e, ao mesmo tempo, completamente ausente da vida de suas mulheres. Como vocês trabalharam o papel do homem na peça?
Desde o começo, a ideia era que o homem estivesse num registro diferente do das mulheres, como um fantasma, uma lembrança, uma fantasia. Então procuramos um ator que tivesse liberdade para criar dentro de um trabalho mais físico. O Kuarahy tem experiência em teatro físico e dança, e criou uma trajetória de partituras de ações para cada personagem, que se repete e se transforma ao longo do espetáculo, com ações que transcendem o realismo. Em outros momentos, ele se torna um “narrador” e tem uma relação mais direta com o texto. A figura do homem, então, tem uma dupla função: “narrador”, realista e “personagem”, com um percurso de sequências de ações, quase dançado, com pouco texto.

Que universo(s) a peça pretende revelar ao espectador?

Cada mulher tem seu pequeno universo, embora existam diversos pontos coincidentes entre os contos. Acho que em geral a solidão, a incomunicabilidade, o amor desencontrado são os temas principais que povoam cada um desses universos. A dona de casa, que se realiza na cozinha, já que seu casamento não lhe traz nenhuma realização; a mulher vítima de violência doméstica, que vive num aborto a gota d’água para sua história; a mulher que sempre viveu à margem e nunca se sentiu completa, e aquela que revive eternamente uma história de sua juventude, esperando um amor que a abandonou… São universos poéticos e, ao mesmo tempo, de um realismo extremo.

Ficha técnica
Texto original: Mia Couto
Adaptação e dramaturgia: Ria Grillo, Anna Zêpa, Kuarahy Fellipe e Tânia Reis
Direção: Rita Grillo
Atores: Anna Zêpa, Kuarahy Fellipe e Tânia Reis
Duração: 60 minutos
Classificação: recomendado para maiores de 14 anos

Serviço
• Peça teatral Ninguém no Plural, do grupo As de Fora
Quando: 5, 6, 12, 13, 19, 20, 26 e 27 de agosto, às 20h
Onde: Espaço Beta do Sesc Consolação – Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo
Quanto: de R$ 2 a R$ 10
Os ingressos podem ser adquiridos na bilheteria do teatro ou neste link
Informações: (11) 3234-3000