Tutameia

Língua de Trapo lança canção e continua ‘versejando, cantando, criticando’

Grupo paulistano apresenta “Pasquale”, avô da personagem que dá título à música mais conhecida do Língua

Ricardo Ferreira/Divulgação LT
Ricardo Ferreira/Divulgação LT
Com várias formações, grupo surgiu entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, no movimento conhecido como Vanguarda Paulista. E segue na estrada

São Paulo – Quando o álbum de capa azul e LP verde começou a tocar nos antigos toca-discos, quem circulava pelo circuito alternativo paulistano já conhecia aquela turma, surgida dos corredores da faculdade de comunicação Cásper Líbero. Mas o disco de 1982 representou uma ruptura musical e de comportamento em um país que ainda estava para se livrar da ditadura, mas não de seus entulhos. Era o grupo Língua de Trapo – nome inspirado na canção Dá nela, de Ary Barroso, gravada por Francisco Aves –, que lançava seu primeiro trabalho. Uma faixa em especial, a quinta do lado A, grudaria na banda para sempre. Quatro décadas depois, ganhou um desdobramento “familiar”.

Concheta é o nome da música que se tornou parte do repertório fixo do Língua, como o grupo é conhecido na intimidade. Agora, nas apresentações, quando o vocalista e fundador Laert Sarrumor pede ao guitarrista Sergio Gama que faça a introdução “daquela” canção, o público ouve os primeiros acordes de Stairway to Heaven, do Led Zeppelin, para então surgirem os versos iniciais, no melhor paulistês italianado: “Querida Concheta/ Estou a te ligare/ Pra te convidare/ Pra mangiare com me”. (Confira aqui o trecho final de Concheta na apresentação mais recente do grupo, no carnaval deste ano, no Sesc Belenzinho, em São Paulo.)

Serginho, Valmir, Marcelo, Zé Miletto, Laert, Cacá e Marcos compõem a atua formação do quarentão Língua (Foto: Ricardo Ferreira/Divulgação)

O “avô da Concheta”

Amanhã (11), o público vai conhecer Pasquale, que o Língua lança nas redes sociais. É o avô de Concheta. Ele deixou a Itália para se aventurar no Brasil e, passado o tempo, questiona se faz a melhor opção. A canção é de Carlos Castelo e Wagner Amorosino. No LP de 1982, Carlos, que era Melo, criou Concheta em parceria com Cassiano Roda. (Leia, no final, minientrevista com Castelo e a letra da nova criação.)

Pasquale deveria entrar no álbum mais recente do grupo, O último CD da Terra, lançado em 2016. Mas, segundo contam, “acabou sendo barrada na alfândega do porto de Santos na chegada do nonno“. Na verdade, houve problemas com a editora, agora resolvidos. “Por sorte, a mala de roupas e um salame de Pasquale foram liberados. Por essa razão, somente agora o single poderá ser conhecido por todos.”

Mistura de linguagens

A “nova” canção do quarentão Língua estará disponível a partir de amanhã nas plataformas digitais (O pré-save: https://onerpm.link/372897570465.) A data não é casual: foi escolhida por se tratar do aniversário do poeta Juó Bananère, pseudônimo usado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, nascido em 1892 em Pindamonhangaba, interior paulista.

A obra de Bananère tem como característica justamente o uso do dialeto da colônia italiana que, com a imigração, passou a povoar bairros centrais de São Paulo, Brás, Bexiga (Bela Vista) e Barra Funda, no início do século passado. Uma confusa e inconfundível mistura de português com italiano. Assim, para criar Concheta, os autores se inspiraram no livro La Divina Increnca, cuja primeira edição é de 1915. Brás, Bexiga e Barra Funda dá nome a livro publicado em 1927 por António de Alcântara Machado.

Influências

Já o Língua tem suas origens em 1979, com apresentações na Cásper Líbero. Era onde os fundadores Laert Sarrumor, Carlos Melo/Castelo, Guca Domenico e Antonio Freitas Neto, o Pituco (há anos morando no Japão), estudavam Jornalismo. Entre suas inspirações, Os Mutantes e Joelho de Porco, marcados pela irreverência. Com doses de Monty Python, o satírico grupo inglês, o que ajuda a explicar a teatralidade dos shows. Era também o tempo da chamada Vanguarda Paulista, movimento que reuniu um sem-número de autores e criadores, novas gerações musicais que surgiam no clima de “abertura” política no Brasil.

O primeiro LP, de 1982: irreverência, crítica e atualidade (Foto: reprodução)

Na tradição dos sambas jocosos e mordazes da primeira metade do século 20, o Língua adicionou altas doses de crítica social e de comportamento. Por exemplo, no sempre lembrado primeiro álbum, fala de sadomasoquismo, retorno dos exilados, ganância empresarial e acidentes nucleares, entre outros temas. E também se mostra (tristemente) atual, como na canção Xingu Disco, sobre as mazelas da questão indígena.

Outros tempos

Gravada no final de 2015 e masterizada em março último, Pasquale tem arranjo de Sergio Gama, o guitarrista do grupo. A formação atual – foram várias nestes mais de 40 anos – tem Laert (vocal), Serginho, Cacá Lima (baixo), Valmir Valentim (bateria), Marcelo Castilha (piano/teclado), Marcos Arthur (percussão) e Zé Miletto (piano).

Os tempos mudam, mas o espírito não. No primeiro disco, na virada do lado A para o B (era tempo de vitrola), os integrantes cantam “Vira, vira, vira… Virou!”. Na semana passada, alguém perguntou como o Língua faria agora, em tempos de internet. Laert (para quem não sabe, também é ator e dublador do ratinho Topo Gigio) respondeu: “Clica, clica, clica… Clicou!”.

Três perguntas ao Castelo:

Concheta foi mangiare na casa de massa do avô?

Foi, sim. E virou até composição musical. Dizem que bem-sucedido é alguém que, ao ficar velho, recebe sempre a visita dos filhos e netos. Por esse ponto de vista, nonno Pasquale pode dizer que não é um perdedor. Mesmo tendo optado por sair da Bota para vir levar bota em São Paulo. Brincadeiras à parte, o velho que, um dia foi o novo, nunca envelhece. É o caso da canção Concheta. Nos anos 1980, ela foi o novo. Dialogou, e deu seguimento, aos versos de Juó Bananère, aos poemas-piada do Oswald, ao macarrônico do Adoniran. Assim, continua em ponto de bala, inclusive para parir novos rebentos. Ou dar à luz ao próprio avô. Na arte, como no Brasil, tudo é possível.

Como Pasquale é de 2015, 33 anos a separam da música da “neta”. O que foi feito do Brás, Bexiga e Barra Funda?

Não posso falar por Brás, Bexiga e Barra Funda, mas posso falar por mim. Há 33 anos, eu acreditava que teríamos uma saída. Hoje, em especial desde o impeachment de 2016, a saída tem sido rir de mim mesmo. E compartilhar com os outros. Quando se rasga uma Constituição, se despedaça bem mais do que as folhas de um livro. Estou certo de que Brás, Bexiga e Barra Funda, há três décadas, eram bem mais risonhos e francos. No entanto, para não aceitarmos que nos descivilizem, é preciso todo dia tomar banho, fazer a barba, botar uma roupa limpa. E, acima de tudo, rir. Rir muito de tudo e todos.

A língua do velho Língua segue falante?

A língua de hoje não é mais a do velho Língua. É um dialeto cheio de palavras de duas letras presente nas redes sociais. Na real, ela não é um idioma, mas um conjunto de siglas postadas conforme a circunstância pede. Acredito que estamos muito perto do grunhido primordial dos neandertais. Mas, como disse antes, é preciso não entregar os pontos. Por isso, nossa teimosia em continuar versejando, cantando, criticando. Em português e até em pasqualês, se for preciso. Como diria o avô da Concheta: “Lunga vita a Língua de Trapo!”.

Confira a letra:

PASQUALE

(Carlos Castelo e Wagner Amorosino)

Io me chiamo Vitorio Pasquale

Di Roma io sonno naturale

Ma no sê perche desdi bambino

Io sono questo ragazzo cretino

La mia mamma berrava: “imbecile”!

Ficca en Italia, no va a Brasile

Ma io, questo maledeto mulo

Viaggei p’resti paese fancullo

Refrão: oggi oglio migna crassia suciale

I digo: vucê é um troxa, Pasquale  (2 vezes)

Mio San Genaro, faiz setent’ani

Desdi chi avuô u primo éreoplani

Chi’stô  niste paese insgugliambado

Ingodicionarmente adirrotado!

Gomecei na Pegna, fazzia uns bicco

I giurava che ia ficá ricco

Sognava andá di becca i gollarigno

I tê argun p’ra gastá nu xoppigno

Refrão

Entô abri una casa di massa

Ma loggo succedeu una disgraza

Servi una sardela vaggabunda

Mattei quasi che toda Barra Funda

No dia ch’io saí da prisó

Un drombadigne me paso a mó

Perch’io fue morá nista confusó

Si na Itália é maise migliore di bó?

Refrão