Entre Vistas

‘Ditadura brasileira foi uma pré-milícia’, diz cineasta Marta Nehring

Às vésperas do 7 de setembro e dos atos contra a democracia, cineasta fala com Juca Kfouri sobre assassinato do pai e a perpetuação da tortura

arquivo nacional / correio da manhã
arquivo nacional / correio da manhã
O economista Norberto Nehring, pai de Marta, tinha 29 anos quando foi assassinado por torturadores durante a ditadura militar, em 1970

São Paulo – Marta Moraes Nehring tinha 6 anos quando seu pai foi assassinado pela ditadura no Brasil em 1970. Assim como centenas de outras crianças, o Estado brasileiro tirou dela a infância ao lado do pai e deixou marcas que são carregadas por toda a vida. Doutora em Cinema, formada em Teoria Literária, roteirista, documentarista, Marta dirigiu em 1996, com Maria Oliveira, o filme 15 Filhos. A obra trata da história de 15 jovens, entre eles Marta e Maria, filhos de brasileiros e brasileiras torturados e em muitos casos mortos pela ditadura.

Às vésperas do 7 de setembro em que haverá gente nas ruas atacando a democracia, Marta Nehring falou ao jornalista Juca Kfouri no programa Entre Vistas, da TVT, sobre esse passado que se reflete tanto no presente no Brasil. 

Afilhada do apresentador, Marta é filha da prima-irmã de Juca Kfouri, a professora Maria Lygia Quartin de Moraes. O pai Norberto Nehring, como define Juca, era um ídolo da sua adolescência e foi a primeira morte enfrentada pelo jornalista quando tinha 20 anos. Norberto foi assassinado sob tortura durante a ditadura pela Operação Bandeirante, no DOI-Codi de São Paulo. “Dessas mortes com as quais jamais me acostumarei. Até hoje diariamente penso nele. Além de ter sido meu ídolo de adolescência e de juventude, é uma figura que tenho como paradigma para minha vida”, disse Juca, sobre o professor da Faculdade de Economia da USP e que militava na organização Ação Libertadora Nacional (ALN) no enfrentamento à ditadura.

entrevistas ditadura militar
Juca Kfouri e Marta Nehring falam das marcas deixadas pela ditadura

Estrutura miliciana

“Os crimes da ditadura foram cometidos, por assim dizer, na ilegalidade”, afirma Marta Nehring. “Nunca foi autorizada a tortura no Brasil, nem execução, nem pena de morte. A Oban era um órgão paramilitar. A ditadura militar brasileira era uma pré-milícia. Os torturadores pertenciam ao Esquadrão da Morte. Essa estrutura miliciana do Brasil nunca deixou de existir. Ela continua no jagunço que mata liderança camponesa, que mata líder indígena”, diz a cineasta.

“Essa coisa dessa violência subjacente à questão social e a quem levanta a cabeça por cima da lama sempre existiu no Brasil. Então, os crimes da ditadura foram crimes cometidos na ilegalidade, disfarçados com um manto de legalidade pelos médicos legistas, pelos falsos atestados de óbito. Todo protocolo da burocracia policial era cumprido.”

A documentarista lembra que no atestado de óbito do pai constava enforcamento num hotel do centro de São Paulo. “Era muito difícil conviver com isso. Você me pergunta das minhas memórias de infância: ainda é um atestado de óbito onde diz que meu pai se enforcou com uma gravata fantasia, não esqueço isso, num hotel da Alameda Nothman.” Requinte de crueldade, o hotel alegado no falso atestado era vizinho ao antigo prédio do Dops onde torturadores também agiam livres.

O corpo de Norberto só foi entregue à família três meses depois de seu assassinato. A exumação comprovou a morte por asfixia mecânica nos porões da ditadura e a mentira impressa no atestado de óbito.

Cultura de violência

Marta ouviu do diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, que a entidade está empenhada em reabrir uma discussão sobre a Lei de Anistia. “Entendemos que o Brasil é um país violento porque nunca produziu as condições necessárias para que seja feita justiça, promovendo o fim da impunidade (dos torturadores)”, critica Sottili, ex-secretário especial de Direitos Humanos.

“Estamos com uma campanha Reinterpreta Já, STF, que tenta mobilizar a sociedade brasileira para que o Supremo Tribunal Federal retome essa discussão. Se o Brasil não assumir a responsabilidade pelos acordos e pactos internacionais que consideram os crimes de lesa-humanidade como crimes não passíveis de anistia, que não podem prescrever, não conseguiremos virar a página da história do Brasil. E continuaremos convivendo com isso que estamos vivendo hoje: a violência, o desrespeito ao Estado de direito, à democracia.”

Para a cineasta Marta Nehring, o país vive hoje o afloramento de questões que estiveram sempre presentes, antes, durante e depois da ditadura. “Quando uma pessoa de um país morre na tortura, quando um jovem negro da periferia morre baleado, quando uma mulher morre espancada pelo marido, o Brasil inteiro perde. Porque estamos fomentando, acobertando e engolindo e convivendo com uma cultura de violência. E isso tem implicações. A questão da tortura começa na abolição. Não temos notícia de ditador da ditadura Vargas que tenha sido punido, nem processado. A história de impunidade da tortura no Brasil é uma história que vem desde sempre. E se perpetua como um modo de operar, um modo de dominação social. O lado da alegria é nosso respiro contra a violência, o respiro que a população encontrou para sobreviver.”

E reforça: “Sem dúvida alguma é preciso reinterpretar a lei da anistia. Tortura é crime hediondo na ditadura e hoje. Não existe perdão para crime hediondo”.

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