machismo

Ao lançar filme, Anna Muylaert relata desafios de ser cineasta mulher

'Levei muita rasteira, atropelada, agressão mesmo', afirmou, sobre machismo. Em encontro com a cartunista Laerte Coutinho, a diretora falou sobre seu mais novo longa, 'Mãe Só Há Uma'

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Anna e Laerte participaram de debate promovido pelo Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo

São Paulo – “Quanto maior o orçamento para a produção, mais o lugar da mulher está ótimo como assistente. Vamos mudar isso falando, falando e falando”, disse hoje (21) a cineasta paulistana Anna Muylaert, durante debate com a cartunista Laerte Coutinho. O encontro ocorreu no Memorial da América Latina, no bairro paulistano da Barra Funda, como parte da programação do 11º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo que neste ano homenageia Anna.

Durante o encontro, mediado pela youtuber Foquinha, elas comentaram sobre os desafios que mulheres encontram no cenário artístico e a questão do debate de gênero, um dos pontos de discussão presente no novo longa-metragem da cineasta, Mãe Só Há Uma. O filme trata da história de Pierre, um jovem de 16 anos que vê sua mãe presa por ter sequestrado o rapaz ainda bebê.

Obrigado a se adaptar em sua nova família, Pierre (vivido por Naomi Nero) ganha o nome de Felipe. Este cenário de mudanças bruscas faz com que o jovem encontre sua identidade, afirmando-se transgênero diante de seus pais rígidos. “O protagonista passa por um processo de reconhecimento pessoal, porém esse filme não é sobre transgeneridade, nem sobre roubo de crianças. Essas questões fazem parte da história que tem sua densidade própria. Quem assiste é capaz de reconhecer as realidades simbólicas que atingem a todos”, comentou Laerte.

Anna afirmou que foi inspirada na história de um garoto que ganhou os holofotes da imprensa em 2002. Aos 16 anos, Pedrinho vivia com sua mãe, que a Justiça descobriu ter sequestrado o jovem ainda na maternidade, em 1986. Após investigação e realização de exames de DNA, os pais biológicos conheceram enfim o seu filho. “Existe uma livre inspiração no caso do Pedrinho. Sempre pensei como seria ter essa dramática alteração na vida, inclusive de classe social.”

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Em ‘Mãe Só Há Uma’, Pierre afirma sua identidade transgênera diante de nova família

Mãe Só Há Uma está em cartaz no festival, que vai até o dia 27, e também no circuito comercial de cinemas em todo o país a partir de hoje.

Machismo

A cineasta paulistana já trabalhou como roteirista em projetos como O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) e Xingu (2011), ambos em parceria com o diretor Cao Hamburger. Como diretora e roteirista, Anna assinou os longas Durval Discos (2002), Chamada a Cobrar (2012) e É Proibido Fumar (2009), além de diversos curtas. Foi, porém, com o premiado Que Horas Ela Volta? (2015) que atingiu o ápice da carreira, até então.

O filme, estrelado por Regina Casé, ganhou prêmio máximo do júri no festival de Sundance e foi o escolhido do Brasil para concorrer a uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Nesse caminho, a cineasta afirmou ter encontrado dificuldades, entre as quais o machismo. “Está presente em todo o mundo, inclusive no profissional. Tive dificuldades não só do mundo para mim, mas também de mim para mim”, conta.

“Minha educação foi machista e tive vários limites colocados por esta orientação”, diz Anna. “Por exemplo, no início, trabalhava duro em produções e na hora do crédito, não colocavam meu nome. Eu achava normal. Demorei até ter certeza do que estava acontecendo. Depois disso veio a disparidade de salários. Cheguei a fazer um trabalho em parceria com um homem: eu ganhava x e ele 10x.”

Entretanto, segundo ela, a maior provação em relação ao machismo surgiu após o sucesso com seu longa de maior sucesso. “Conquistei meu espaço até chegar em um ponto, no Que Horas Ela Volta?, que encontrei ali o clube do bolinha. Levei muita rasteira, atropelada, agressão mesmo. Foi onde mais senti, depois de muitos anos de carreira. Chegar em um lugar de valor financeiro e poder, aí chega o problema. É só ver dos 100 maiores filmes de todo ano, tem um ou dois dirigidos por mulheres”, afirma.

“Não esperava encontrar tanto machismo. Homens não aceitando que um filme de sucesso tenha sido escrito e dirigido por uma mulher.Tentaram me anular, mas não conseguiram” , diz Anna Muylaert

“Percebi que é assim: ‘mulherzinha pode fazer curta, filminho de arte’. Existe uma grande resistência que eu estou tentando ajudar a quebrar. Hoje, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) determinou que todo edital deve ter paridade de gênero na comissão julgadora de novos projetos. Excelente, agora provavelmente isso vai se refletir. É uma questão de representatividade. E temos que brigar para isso acontecer”, avalia.

Para exemplificar a disparidade no tratamento entre homens e mulheres por trás das câmeras, Anna cita as séries de grande orçamento. “Nunca me chamaram para dirigir nenhuma. Então, eles chamam diretores muito menos experientes, com currículo muito menor, porque o mercado, quanto mais dinheiro tem, menos confia na mulher. Parece que aquele carinha de 28 anos e camiseta polo vai far certo e a mulher com cabelão e dois filhos não: ‘vai que ela engravida?’”, ironizou. “Não esperava encontrar tanto machismo como encontrei. Homens não aceitando que um filme de sucesso tenha sido escrito e dirigido por uma mulher. Tentaram me anular, mas não conseguiram”, completou.

Agora consagrada, com dois filmes em menos de dois anos, Anna quer descansar. Terminou o debate dizendo que deve buscar um bom tempo no campo, com sua família, para pensar em um novo projeto. Ela adiantou que o tema de seu futuro filme deve ser justamente a naturalização do machismo na sociedade.