Brasil precisa de um novo ciclo de luta social pela habitação, diz especialista

Para Ermínia Maricato, o Brasil assistiu a uma inversão: primeiro comprar bens em geral, depois pensar na casa (Foto: Lindomar Cruz. Arquivo Agência Brasil) São Paulo – Casas precárias mas […]

Para Ermínia Maricato, o Brasil assistiu a uma inversão: primeiro comprar bens em geral, depois pensar na casa (Foto: Lindomar Cruz. Arquivo Agência Brasil)

São Paulo – Casas precárias mas cheias de eletroeletrônicos, automóveis e motos entupindo as cidades são sinais de que o Brasil andou na contramão da reforma urbana. A avaliação é da professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) Ermínia Maricato, uma das idealizadoras do programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida. “Nós não fizemos a reforma urbana. O capitalismo central fez, sem dúvida nenhuma. A América do Norte, Europa, Austrália, a Nova Zelândia fizeram”, exemplificou.

Segundo a pesquisadora, além de não realizar a reforma urbana, os movimentos sociais, os governos e a academia no país abandonaram a luta por políticas públicas de transporte coletivo, moradia e saneamento. Para alcançar um novo patamar de desenvolvimento, a especialista acredita que é necessário iniciar um “novo ciclo de luta social”.

A professora também ironiza o excesso de marketing da política habitacional do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (PSD), que na prática “é uma violência”. “Parece que nós nos esquecemos que estamos tratando com o prefeito que está expulsando e violando direitos”, afirma.

Confira na íntegra a entrevista da urbanista à Rede Brasil Atual:

Segundo o geógrafo britânico David Harvey, o capitalismo nos Estados Unidos expandiu-se com a ideia de ter uma casa própria e a necessidade de enchê-la de eletrodomésticos. O Brasil trilha caminho semelhante?

É muito diferente dos Estados Unidos, porque a gente ainda não tem o mínimo básico suprido. A gente fez uma pesquisa, que começou em 1974, sobre a introdução dos bens modernos na habitação proletária em São Paulo. E o que você vê na moradia brasileira proletária é a péssima condição de salubridade e de higiene. Se você olhar para o design da casa, é uma coisa pré-moderna, autoconstruída, e se você olhar o design da tevê, você leva um susto, porque é uma referência de séculos, às vezes, que vai além da referência que a casa dá. É uma casa feita sem planta, sem conhecimento organizado de engenheiro e de arquiteto, construída aos poucos. Então a questão se coloca de forma diferente. O financiamento dos bens propicia encher a casa, mas não propicia a casa. Atualmente, o programa Minha Casa, Minha Vida atende a uma população de renda muito pequena, mas ele possibilita você ir lá e comprar os aparelhos que as multinacionais fazem.

No Brasil, houve inversão? 

É importante começar a pensar o porquê disso. Nós abrimos um espaço no mercado interno para compra de objetos, e não para a casa, porque ela está ligada à terra. E, na sociedade brasileira, terra é um nó. Parte significativa da nossa cidade tem terras ocupadas ilegalmente e como se escolhe quem vai ser despejado? Não é todo mundo que está sendo despejado. Se escolhe pelo valor da terra. Há o mercado imobiliário bombando, que precisa de localizações e que vai atrás daquilo que vale. Quando o pessoal ocupa, aquilo não tem valor, pois a localização é perigosa, insalubre, longe de tudo, mas quando está valorizado, porque ganhou infraestrutura, passou a ter transporte perto, passou a ter comércio perto, essa favela é despejada. As outras não. Se Fortaleza tem 34% da população morando em favelas, e em Recife, tem mais do que isso, quem vai ser despejado? Aquilo que tem valor de mercado. 

Essa inversão foi propiciada pela carência de uma reforma urbana?

Nós não fizemos a reforma urbana. O capitalismo central fez, sem dúvida nenhuma. A América do Norte, Europa, Austrália e a Nova Zelândia fizeram. Em Paris, é impossível você ficar com um apartamento vazio mais do que a própria lei estabelece. É importante fazer essa diferença entre nós e eles. Eu acho que o mercado, a partir da globalização, realmente domina as mentes e os corações, tanto que tem jovens nas favelas, às vezes, próximos do esgoto, que têm MP3, MP4, videogames. E ninguém mais defende o transporte coletivo, porque é possível você chegar no carro e na moto com prestações módicas.

Se o Programa Minha Casa, Minha Vida não protegeu a população economicamente mais carente, quais são as alternativas para garantir isso?

Antes de mais nada, nós lutamos 40 anos pela chamada reforma urbana. A questão central na reforma urbana era a terra. Eu participei da criação do Ministério das Cidades e pensei que a gente fosse por a questão urbana na agenda política brasileira. E, sem dúvida, o que a gente mais queria, além do financiamento, do subsídio, era a reforma imobiliária. E ela não ocorreu, ao contrário, ocorreu um aumento radical no preço da terra e dos imóveis no país. Nesse sentido, Minha Casa Minha Vida andou na contramão da reforma urbana. E, por incrível que pareça, nós tivemos uma desistência por parte das prefeituras, de grande parte dos movimentos sociais e da academia, que tomou outro rumo também. Então, eu acho que nós precisamos achar um novo ciclo de luta social no Brasil, porque sem dúvida, esse se esgotou.

Sobre o problema do transporte coletivo, a facilidade do carro esmorece a luta por um transporte coletivo de qualidade?

Essa é a principal questão hoje no Brasil, sem dúvida nenhuma, não só do transporte coletivo, mas essa loucura que é colocar carros em todas as cidades. Tem sete mil carros entrando em Fortaleza anualmente. São todas as cidades brasileiras que estão ficando absolutamente atravancadas. É uma política absolutamente suicida, porque é impossível acompanhar. Se nem Los Angeles conseguiu, com aquela abertura maluca de vias, absorver satisfatoriamente o automóvel, não vamos ser nós que vamos conseguir, com esse sistema viário, que é ridículo, mas que absorve a maior parte dos orçamentos municipais, com asfaltos, pontes, viadutos, avenidas, etc. Então, é outra derrota que nós sofremos na proposta de reforma urbana. Foi com o neoliberalismo que desapareceu a política pública de transporte, de habitação, de saneamento. O governo Lula retomou a política de saneamento e de habitação, com o Minha Casa Minha Vida, que já deu uma inflexão, mas de transporte urbano não tem. Ninguém retoma, é um limbo no país. Quem hoje defende o transporte? A população da periferia está defendendo a compra da moto, porque ela é muita barata. No Nordeste, o jegue foi substituído pela moto. Você pode comprar um jegue a R$ 1 ou a R$ 2 na região, porque ninguém mais o quer, já que a moto custa R$ 50  por mês. Nós estamos em uma situação absolutamente irracional, do ponto de vista da sustentabilidade, do desenvolvimento social, urbano e ambiental.

Qual é sua avaliação da política habitacional da prefeitura de São Paulo?

Ela é um sucesso. Você não viu o Estadão no domingo? O último Jornal da USP apontou o brilho da política habitacional de Kassab. Por quê? Porque eles pegaram alguns arquitetos de nome, fizeram alguns projetos pontuais e está o maior sucesso. É um marketing muito bem sucedido, mas na prática é uma violência. Parece que nós nos esquecemos que estamos tratando com o prefeito que está expulsando e violando direitos. 

Colaborou Estevan Muniz