Waldemar, o pedido de Dom Paulo e o discurso para o papa

Fundador da Pastoral Operária confessa situação difícil diante de pedido de dom Paulo Evaristo Arns para que cortasse a fala em que denunciava a morte de trabalhadores pela repressão

São Paulo – 3 de julho de 1980. Há datas que nunca saem da cabeça de uma pessoa. Waldemar Rossi não esquece da noite chuvosa no estádio do Morumbi, na zona sul de São Paulo. Preparou-se durante trinta dias para o momento em que o papa João Paulo 2º estaria no local em uma saudação organizada para os trabalhadores.

“Dom Paulo pediu para não contar nem para minha esposa. Ele sabia do risco”, recorda-se um dos fundadores da Pastoral Operária e integrante da oposição ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, em intervenção durante a ditadura. A pastoral, criada dez anos antes e amplamente apoiada pelo cardeal de São Paulo, elencou alguns pontos que deveriam constar no discurso, e o metalúrgico se preparou para não fazer feio.

O 2º Exército, que assumira a segurança do evento por considerar se tratar da visita de um chefe de Estado estrangeiro, quis saber com antecedência quais seriam os envolvidos na realização da cerimônia. Ao averiguar a ficha de Waldemar, negou sua credencial: “comunista contumaz” não entra.

Em 1974, ele e vários integrantes da Pastoral Operária haviam sido presos pela repressão. Na sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em São Paulo, Waldemar ficou sem contato com o mundo externo durante 25 dias. Dom Paulo, que já havia feito caminhadas ao redor do prédio para denunciar a detenção ilegal, um belo dia perdeu a paciência, entrou no prédio e exigiu falar com o delegado. Logo que viu o amigo, acusou a tortura. “A gente não conversou muita coisa. Nem precisava. Só de olhar para mim”, diz Waldemar, que lembra que o contato foi vigiado por quatro agentes.

A relação sincera entre os dois teve início logo da nomeação de dom Paulo para o comando da Arquidiocese, em novembro de 1970, uma semana após a Missa do Emprego e Salário Justo, marco originário da Pastoral Operária. Após a morte de um militante, o então arcebispo quis saber: os integrantes da entidade eram a favor da luta armada?

– Dom Paulo, vamos responder, mas vamos fazer algumas perguntas – questionou Waldemar.
– Pode fazer – autorizou o franciscano.
–  Nós temos o direito de nos organizar para defender nossos direitos?
–  É um dever fazer isso.
– Estamos fazendo. Na hora em que a gente vai ganhando força, vem a ditadura e mata.
–  Aí vocês têm o direito da legítima defesa.

Quase uma década depois, dom Paulo lançou mão de uma de suas características marcantes, a confiança, e deu carta branca para Waldemar formular o discurso que seria feito ao papa. “Quando apresentei o texto para Dom Paulo, ele leu e não fez uma correção sequer.” Após um mês de preparação, era natural que a tensão na porta do estádio fosse grande. Dom Paulo deu uma autorização própria para que o metalúrgico pudesse entrar no Morumbi.

O jornal Folha de S. Paulo de 4 de julho de 1980 dá uma pista da alta voltagem no local. Um encontro de trabalhadores com o papa em plena ditadura, ainda que em fase de distensão, não era uma situação corriqueira. Segundo a reportagem, foi preciso enfrentar todo tipo de “dissabores” para entrar no Morumbi, e nem mesmo sanduíches foram permitidos por uma (peculiar) questão de segurança.

No caso de Waldemar, a tensão não baixava em momento algum. Do lado de dentro, recebeu o recado de que o cronograma da visita do papa estava atrasado e deveria cortar o discurso. “Era o grande momento da classe operária brasileira em um cenário em que dirigentes sindicais estavam cassados”, pondera sobre o porquê de ter se negado a reduzir a fala.

Mas aí veio dom Paulo avisar que se tratava de um pedido do cerimonial do Vaticano. “Não ia comprar uma briga com dom Paulo. Por outro lado, estaria frustrando todo o pessoal que estava esperando por um pronunciamento mais duro”, rememora Waldemar, entre a cruz e o martelo. “Isso me deixou muito chateado”, confessa, três décadas depois, mesmo com o esclarecimento feito por dom Paulo aos 130 mil presentes de que o líder sindical só poderia ler o primeiro e o último parágrafos de seu discurso por conta do horário avançado – naquela noite, o papa ainda teria outros encontros, um deles com o emergente sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva.

Mesmo chateado, Waldemar levantou o estádio ao denunciar as mortes de trabalhadores pelo regime autoritário. Em uníssono, a massa gritava “Liberdade, liberdade”, e o papa pediu auxílio a dom Paulo para saber o que ouvia. “Foi o momento mais forte do encontro”, garante Waldemar, que por fim deixa de lado o tom de desapontamento para demonstrar alegria.