Sob críticas e disputas, anteprojeto da Comissão da Verdade é finalizado

Grupo Tortura Nunca Mais lamenta que pressões de militares tenham forçado alteração da proposta, agora “esvaziada” e “para inglês ver”

São Paulo – Será encaminhado na próxima semana à Presidência da República o anteprojeto de lei que prevê a instalação da Comissão da Verdade. Terminou nesta sexta-feira (30) o prazo para que a Casa Civil, os ministérios da Justiça e da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos concluíssem o trabalho iniciado em janeiro.

Prevista na terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), o intuito da comissão é investigar violações ocorridas durante a ditadura (1964-85). Mas a tarefa passou por transformações até chegar ao formato atual. As Forças Armadas e o Ministério da Defesa fizeram forte oposição ao tema e Nelson Jobim ameaçou deixar a pasta caso não houvesse recuo. O “caminho do meio” foi detalhado ao longo dos últimos meses e a expectativa é de que o tema seja encaminhado ao Congresso Nacional, onde são esperadas novas rodadas de discussões acaloradas.

“Uma das atribuições de todas as comissões da verdade é justamente abrir os arquivos, ouvir testemunhas, ouvir pessoas implicadas e, naturalmente, se bem feito o processo, identificar nomes e pessoas que atuaram na época, nas violências durante a ditadura”, afirma Maurice Politi, vítima da ditadura e um dos integrantes do grupo de trabalho que elaborou o anteprojeto.

Mas, para entidades que militam na área de direitos humanos, esta Comissão da Verdade, mesmo que saia do papel, não é a desejada. O Grupo Tortura Nunca Mais pondera que houve a troca de termos específicos no texto inicial de criação da comissão como forma de garantir que não haverá investigação específica a respeito da ditadura – por exemplo, “contexto de repressão política” por “contexto de conflitos políticos”.

“Isso esvazia a Comissão da Verdade como a gente queria. Porque quando diz ‘repressão política’ é algo feito pelo Estado, pelo terrorismo de Estado. Quando coloca ‘conflitos políticos’, pode ser qualquer coisa. Esvazia-se a responsabilidade do Estado. Essa comissão é para inglês ver. Nós não aceitamos”, afirma Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais.

Supremo Tribunal Federal

O decreto assinado em janeiro pelo presidente Lula deixa claro que a atuação, tanto da Comissão da Verdade quanto do grupo de trabalho que criou o anteprojeto, está limitada pela Lei de Anistia (6.683 de 1979).

O fechamento do anteprojeto, por coincidência, é feito um dia depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu considerar improcedente o pedido para que pudesse ser revista a anistia aos torturadores, fazendo a diferenciação entre crimes comuns e crimes políticos. Por sete votos a dois, os ministros determinaram que os argumentos apresentados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) não são suficientes e que uma eventual revisão poderia ser feita apenas pelo Legislativo.

Para o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, o Supremo perdeu o bonde da história ao tomar tal decisão. “Cria um enorme débito para com a população brasileira e para com a história de nosso país. Isso porque, até hoje, não se descobriu a verdade com relação aos crimes cometidos na ditadura militar e anistia não é esquecimento. Anistia é perdão. Não podemos esquecer e muito menos perdoar aquilo que não conhecemos”.

Os ministros entenderam que a anistia tem um caráter amplo, geral e irrestrito, não cabendo qualquer dúvida quanto a isso. Além disso, vários deles seguiram a linha do relator, Eros Grau, que apontou que a lei 6.683 foi fruto de enorme discussão dentro da sociedade e que foi aprovada por um Congresso legítimo, na contramão do argumento apresentado pela OAB.

Cecília Coimbra não tem dúvida de que a Lei de Anistia não tem legitimidade e lamenta que exista uma onda conservadora que rejeita qualquer passo em direção ao acerto de contas com o passado. A presidente do Grupo Tortura Nunca Mais admite que não via com grande esperança a possibilidade de o STF autorizar a revisão, mas não deixa de lamentar a decisão. “Não estamos em momento nenhum pedindo que os torturadores sentem no banco dos réus, sejam condenados à prisão perpétua, à pena de morte. Somos contra essa lógica, que é a lógica da ditadura. O que a gente continua querendo é uma releitura da Lei da Anistia, que foi um grande conchavo feito entre elites”, afirma.

A Anistia Internacional é outra entidade que lamenta a decisão do Supremo. Em comunicado, o pesquisador Tim Cahill pontuou que a decisão dá um selo de aprovação àqueles que cometeram crimes contra a humanidade. “Isto é uma afronta à memória dos milhares que foram mortos, torturados e estuprados pelo Estado que deveria protegê-los. Às vítimas e a seus familiares foi novamente negado o acesso à verdade, à justiça e à reparação.”

Com informações da Reuters e da Agência Brasil.