América Latina

Seminário mostra atraso do Brasil na apuração de crimes da ditadura

Para promover a justiça e reparação, país ainda precisa garantir acesso a arquivos. Países como Argentina, Chile e Paraguai estão mais avançados nesse processo

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Mulheres que atuaram nas comissões da verdade contam as experiências de seus países no seminário

São Paulo – O Brasil está atrasado no processo de justiça e reparação aos trabalhadores e sindicalistas vitimados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Até agora não houve punição de culpados, nem indenização às vítimas ou suas famílias. E uma etapa essencial para que esse processo se consolide, que é o acesso pleno aos documentos, ainda é cercado de desafios, como é o entendimento do pesquisador Vicente Rodrigues, do Centro de Referência Memórias Reveladas, no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, instituição que pertence ao Ministério da Justiça.

Rodrigues participou ontem (8) de seminário que discute a experiência dos países da América Latina. O encontro vai até amanhã (10) no auditório do Sindicato dos Químicos de São Paulo, na região central da capital paulista. Em mesa-redonda durante a tarde, ele falou ao lado de representantes do Paraguai, Argentina, Chile e Guatemala.

“Vocês já ouviram falar que as Forças Armadas não colaboram de fato na localização da documentação desaparecida”, afirmou o pesquisador, “mas há outros desafios que não partem simplesmente das Forças Armadas.” Segundo Rodrigues, a disparidade do Brasil em relação a outros países da América Latina, como Argentina e Chile, é que aqui o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que teve mandato de 2012 a 2014, começou quase 30 anos depois do fim da ditadura. Apesar disso, a comissão foi dotada de poderes e potencialidades que teriam permitido um trabalho mais profícuo, na opinião do pesquisador.

“A comissão podia buscar colaboração de agentes públicos, de acessar instalações públicas, coisas que por exemplo o Arquivo Nacional não tem direito. Nós não temos como entrar a fórceps nas instalações militares. A Comissão Nacional da Verdade teve esse poder”, afirmou. Isso, no entanto, resultou em um avanço relativo. “Como se explica que em dois anos, apenas três acervos de interesse tenham sido localizados pela CNV? Por que isso, um resultado tão pouco expressivo”, indagou Rodrigues.

“Exatamente essa pergunta eu fiz à ex-coordenadora da CNV Rosa Cardoso. O que ela me relatou abertamente foi que a Comissão padeceu de uma certa desorganização no início dos trabalhos, e quando finalmente se organizou, a CNV se sentiu fraca após 2013, principalmente quando entramos nessa espiral de instabilidade”, referindo-se à crise política que culmina com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff pelo processo de impeachment.

O pesquisador do Arquivo Nacional concorda que a CNV se enfraqueceu porque foi estabelecida pelo governo Dilma, na primeira gestão. Dos três acervos encontrados pela comissão, Rodrigues explicou que apenas um deles, a divisão de informações da Petrobras, está no Arquivo Nacional, como é determinação da lei que instituiu a CNV. O acervo do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), órgão que atuava para o regime militar e é considerado um dos mais duros da repressão no país, está em poder da Universidade Federal de Minas Gerais. Rodrigues disse que entrou em contato com a universidade para solicitar a transferência para o Arquivo Nacional, mas que não houve acordo. “Isso mostra que os desafios não estão somente no campo militar, porque a memória presente nesses arquivos é tema de disputa e apropriação”, afirmou.

O outro acervo pertence ao Ministério do Trabalho e Previdência Social. “Está extremamente desorganizado, é uma montanha de documentos”, afirma o pesquisador. Para o meio sindical, esse arquivo é importante e deverá revelar os documentos das intervenções dos militares nos sindicatos. No dia 3 de maio, praticamente no apagar das luzes de seu governo, Dilma Rousseff criou uma comissão da verdade que vai investigar a repressão aos sindicalistas entre 1946 e 1995, com maior interesse no período militar. A portaria assinada pelo então ministro Miguel Rossetto foi sensível a pressões do Centro de Documentação da CUT (Cedoc) e do Arquivo Nacional, que deverá receber o acervo.

Experiências pioneiras

A representante do Chile, María Luisa Ortiz Rojas, do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos, em Santiago, apresentou um panorama de como tem sido a atuação por meio da Comissão da Verdade, o que considera “um processo fundamental para fortalecer a democracia”.  No Chile, foi formada uma comissão logo após o fim da ditadura, em 1990. Uma outra comissão foi formada em 2003, para completar o trabalho, pois ainda havia vítimas não abordadas na primeira comissão.

O marco jurídico desse trabalho é regulado também por um conjunto de princípios para a proteção e promoção dos direitos humanos, permitindo combater a impunidade. María Luisa disse que foi desenvolvido um processo dinâmico para preservar a história, concentrado informações de organizações de direitos humanos, das vítimas e arquivos judiciais. “A documentação produzida permitiu o direito de reparação”, afirmou a pesquisadora.

Para a pesquisadora Rosa Palau, do Centro de Documentación y Archivo para la Defensa de los Derechos Humanos, em Assunção, Paraguai, os arquivos da ditadura são importantes para o funcionamento das instituições, tanto quanto para o processo de justiça e reparação. “Cada pessoa tem o direito de saber a verdade sobre o sucedido”, disse. No país vizinho, a primeira sentença condenatória foi declarada em 1992 a cinco torturadores. Rosa também disse que os documentos revelaram evidências da Operação Condor, realizada entre países do continente com a CIA, dos Estados Unidos, para articular a repressão nas décadas de 1970 e 1980. Fato curioso, Rosa contou que foi encontrada uma biblioteca com livros proibidos pelos militares, entre eles, um livro de matemática, cujo autor era russo, e um livro de engenharia sobre concreto “armado”.

Já a representante da Argentina, a antropóloga Valeria Barbuto, da instituição Memoria Abierta, em Buenos Aires, disse que a construção da memória sobre as violações da ditadura é “um exercício constitutivo da identidade dos trabalhadores e dos organismos de direitos humanos”. Apesar de a justiça em seu país já ter realizado condenações, o processo, segundo ela, é complexo, com avanços e retrocessos. Valeria falou também sobre o processo econômico e social que se instalou no país entre 1973 e 1983, como subjacente ao processo de repressão política, que ela chamou de “terrorismo de estado”.

Ao falar da Guatemala, a pesquisadora Velia Muralles, do Archivo Histórico de la Policia Nacional, disse que o processo de construção da memória tem valor pedagógico para as novas gerações. “É preciso construir justiça e memória para não permitir a repetição. A experiência na América Latina é capaz de transformar informação em ação pela defesa dos direitos humanos individuais e coletivos.”

Serviço

4° Seminário Internacional o Mundo dos Trabalhadores e seus Arquivos: Memória, Verdade, Justiça e Reparação, de 8 a 10 de junho de 2016, no Sindicato dos Químicos: rua Tamandaré, 348, Liberdade, São Paulo. Web: seminariomundodostrabalhadores.cut.org.br.